Isabel Sabino propõe que A menina (não) fica em casa

Patente no Museu Militar de Lisboa até dia 30 de Setembro deste ano, a lúcida intervenção de Isabel Sabino enquadra-se no projecto mais vasto denominado Evocação, num convocar da Arte Contemporânea em alusão à Grande Guerra.

Inaugurou no dia 15 de Junho e permanece, portanto, até 30 de Setembro; ocupa as Salas da Grande Guerra e inscreve-se num programa evocativo dos acontecimentos que ocorreram entre os anos de 1914 e 1918, concretamente, entre 9 de Março de 2016, data em que se assinalou o centenário da declaração de guerra da Alemanha a Portugal, e 18 de Novembro de 2018, momento em que se marcará o centenário do armistício.

Tal intervenção “assume como perspectiva um olhar feminino”: lê-se no texto-testemunho assinado por Isabel Sabino em Abril de 2016, e que a acompanha. Na verdade, a pintora interpela-nos acerca da figuração feminina que persiste no museu, essencialmente da ordem do imaginário, e, neste, seguindo aquela que mais se adequa ao espírito guerreiro. Assim, e seguindo as suas palavras, “alegorias da vitória, da fama e da glória ou dos lugares de conquista, guerreiras ou anjos protetores, mas também assombrações do terror, esposas, mães enlutadas e carpideiras, ou ainda deusas, ninfas e Nereides, aparições sensuais de amantes longínquas.”

Não será despiciente, por exemplo, assinalar, logo na primeira sala em que se dispõem quatro vitrinas, duas das quais reservadas às proposições da pintora de que nos ocupamos, um gesso da autoria de Francisco Santos, e do ano de 1913, a representar a República Portuguesa. Se nos lembrarmos de Joan B. Landes, ao traçar o movimento entrelaçado das mulheres e da esfera pública para a época da Revolução Francesa, matriz das repúblicas contemporâneas, facilmente concluímos que foram não apenas construídas “sem” as mulheres, como inclusivamente “contra” elas. Aqui radica a acutilância das palavras de Isabel Sabino e, na verdade, à mulher resta a árdua tarefa de resgatar um corpo subsumido em imaginários sem dúvida inscritos num autêntico inconsciente colectivo. A nós parece-nos existir, neste aspecto, um desequilíbrio evidente entre o feminino e o masculino.

Comecemos.

Primeira vitrina, primeira sala: “A menina não fica em casa” – 33 pinturas com dimensões entre 13 e 33 cm, em técnica mista de acrílicas s/tela. Um contributo para a história de mulheres anónimas que trabalharam, aquando da Grande Guerra, em fábricas, nos campos ou como enfermeiras. Portanto, destaca-se aqui o mundo do trabalho e de como a guerra, ocasião de fuga imposta aos homens, proporcionou às mulheres uma ocupação maciça em lugares desusados. Tal infiltração abriria uma ferida a acrescer às que o conflito armado se encarregaria de perpetuar; não nos diz Walter Benjamin que não consta que os homens regressassem das trincheiras, e de uma guerra na generalidade, ricos em experiência? A palavra, aqui, emudeceu, murchou, calou-se.

Segunda vitrina, primeira sala: “Mulheres de armas” – 14 pinturas com 18×13 cm e 1 com 40×50 cm, na mesma técnica. Aqui, destaca-se o plano de clamação por direitos e conforma-se, por tal, uma galeria de mulheres que por eles lutaram, lembrando-se, entre outras, Elina Guimarães, Maria Lamas ou Ana de Castro Osório. Será interessante ligarmos tal galeria, bem como os medalhões em que se gravam os seus nomes, para que se inscrevam na memória colectiva, com as condecorações presentes nas duas outras vitrinas da mesma sala; com efeito, nestas podemos descortinar medalhas e espadas de honra atribuídas àqueles que deram o seu corpo na guerra. Enquanto tal, às mulheres cabia encetar um outro conflito, em compulsão com o tempo histórico e enxertando na cultura um feminino essencialmente dito pelos homens. O que a Cruzada das Mulheres Portuguesas acentua.

Antes mesmo de avançarmos para a sala seguinte, aquela em que permanece “Miss Maria”, gostaríamos de assinalar o modo visual das telas destas duas vitrinas. Modo, aliás, que se transfunde na instalação seguinte, densificando a metáfora que, todavia, na primeira sala parece ainda remeter-nos para o problema da pintura na contemporaneidade. Assim, assinalamos um naturalismo e um realismo “ensanguentados”, que tanto remetem para a irrisão da experiência das mulheres, como para a própria ferida do olhar aberta essencialmente pelo modernismo. Dizemo-lo baseadas na película vermelha que cobre tais telas, bem como nas camadas de tinta ocasionais, como se de selos se tratasse, ou mesmo de resíduos de mercúrio. Ora, tal película vermelha alude certamente ao longo caminho percorrido, mas também ao sentido próprio da pintura enquanto histórico registador do mundo exterior, para, mais proximamente, se tornar detonador de sanguinidades interiores. O cinismo não pode obliterar tal (im)possibilidade da pintura.

Instalação, segunda sala: “Miss Maria” – com as dimensões de 153x255x400 cm, utilizando materiais têxteis e outros. Num solo que sangra, as trincheiras simbólicas, mas efectivas, que se erguem actualmente entre as mulheres e os homens, seja no que se refere à mutilação genital feminina, seja no que concerne aos casamentos generalizados com crianças-meninas, seja na desfiguração dos corpos de mulheres baseada na fúria. Dispersam-se fotografias, portanto, que marcam tais violências, acomodadas em pequenos saquinhos de gaze transparente, de cor vermelha e com lacinhos.

Exposição concentrada, portanto, em duas salas, e que, não sendo vasta, densifica de forma pungente uma questão dupla: qual o destino para o par feminino/masculino e qual o destino para a pintura? Esta contribuiu secularmente para cristalizar símbolos que herdámos e que estão aí, nas horas de todos os dias; pode a arte ainda reinventar-nos? Oxalá que sim. Isabel Sabino acredita, e eu acredito nela.

Para ver, então, no Museu Militar de Lisboa, no Largo Museu da Artilharia, até dia 30 de Setembro.

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