Projecto Travessa da Ermida / Uma travessa em Lisboa

Era uma vez uma travessa. E, como tantas outras, passava despercebida. Até que, um dia, alguém lhe atribuiu três segredos: uma ermida transformada em centro de exposições; um ateliê de joias, de onde saíam peças que contavam estórias em português; e uma enoteca, pequena, a condizer com a travessa, mas grande, para ser a principal anfitriã desta iniciativa que leva o nome de Projecto Travessa da Ermida.

Ao entrarmos na Travessa do Marta Pinto, em Belém, somos recebidos por uma passadeira vermelha, que nos leva a um símbolo da zona: um pato mudo, feito de azulejos, da autoria do Estúdio Pedrita, animal típico do Jardim do Ultramar, que recebe quem aqui chega na sua plena natureza: em silêncio. Enquanto caminhamos até ele, as andorinhas da fábrica Bordalo Pinheiro, que enfeitam as paredes, parecem querer voar. Mas o nosso caminho leva-nos até à pequena Enoteca de Belém – pequena, mesmo, uma vez que pode receber apenas 19 comensais de cada vez (16 à mesa, três ao balcão). E esta acaba, numa noite chuvosa e fria, por ser o lugar ideal para saborear uma boa refeição e beber um bom vinho.

Nas paredes desta “pérola de Lisboa” [designação atribuída pelo Luxury Travel Blogue que a nomeou a nº1 na lista ’10 Pérolas Para Beber Vinho e Comer no Mundo’] ganham destaque duas formas de arte: as quatro litografias de Paula Rego, de uma série de nove intitulada ‘O Vinho’; e o próprio líquido de Baco. Aqui não há carta de vinhos, há algo ainda melhor: Nelson Guerreiro, que está pronto para responder a qualquer dúvida sobre a garrafeira, que inclui mais de 80 referências [a partir de 22€, a garrafa; 4,5€, o copo]; e, para quem quiser ver melhor as garrafas fora de alcance, dois binóculos disponíveis para o efeito.

Uma manteiga de cabra caseira, pão e azeitonas são suficientes para preparar o estômago, enquanto a comida não chega. Um petit amuse de cogumelos, presunto e vinagre balsâmico abre as portas para o que se segue: camarão salteado, maçã caramelizada e pimentos padron numa cama de maionese de tinta de chocos.

Na Enoteca, os sabores mais tradicionais misturam-se com uma cozinha mais contemporânea. A responsabilidade deste cruzar de influências é do chef Ricardo Gonçalves, que nos apresenta de seguida um clássico da cozinha portuguesa: Ovos mexidos com farinheira, ao que acrescenta espargos e óleo de trufa branca. A acompanhar, um dos vinhos de produção própria: Encruzado Branco Dão 2012 D.O.P. 

O atendimento personalizado é ainda uma das referências deste espaço e, assim, não é de estranhar que, por exemplo, os clientes coreanos sejam recebidos na sua língua, uma vez que são grandes fãs da Enoteca, referência permanente nos cinco primeiros lugares dos melhores restaurantes em Lisboa, segundo o portal TripAdvisors. Aqui, procuram, sem exceção, o famoso bife à Portuguesa. Mas é ao bacalhau gratinado em maionese de alho, com linguiça picante, cebolada e batata a murro que cabem as honras de nos continuarem a seduzir as pupilas gustativas. Mais uma vez, a tradição cruza-se com a cozinha moderna.

Mas a surpresa maior está guardada para o fim: Um arroz de pato que não é preparado de forma tradicional – não vai ao forno e é perfumado com cenoura e salsa e que serve de base a um pato confitado lascado com pele. Mais do que recomendado, bem saboreado e bem acompanhado pelo vinho tinto da ‘casa’: Projeto Travessa da Ermida tinto Reserva 2010, da Península de Setúbal.

“Um café e um pastel de nata!”, ouve-se muito, após as refeições, nas pastelarias de Lisboa. Por isso, aqui, a sobremesa segue a regra: Leite creme acompanhado com gelado de café.

A noite arrefeceu ainda mais e, lá fora, neste pedaço de Lisboa que se cola ao rio, o nevoeiro cobre as ruas. Mas as pessoas e as conversas, os sabores portugueses e o vinho há muito nos fizeram esquecer disso.

travessadaermida.com
© Fotografia: João Pedro Rato