O nordeste transmontano tem estórias e gente dentro. Gente sequiosa de partilhar o que a terra dá, de partilhar sabores e experiências à mesa. Hoje, com uma visão recreativa da cozinha portuguesa. Sejam bem-vindos ao restaurante G da Pousada de São Bartolomeu, em Bragança.
Bragança é terra fria de Trás-os-Montes. É de mesa farta, com a charrela, ou perdiz-do-norte, o porco bísaro, os enchidos, como a alheira, o butelo, o azedo ou o salpicão, o cabrito, o cordeiro assado, o congro e as trutas, os cogumelos, a castanha… É “terra grossa, fragosa, bravia” (“Reino maravilhoso”, in Portugal, 1950), de Miguel Torga, do castelo gótico com barbacã, de arquitetura militar, o protagonista da contemplação dos comensais do G, o restaurante da pousada de Bragança, “um cartão de visita da cidade” que, desde 1 de março de 2014, é administrado por dois irmãos bragançanos, Óscar, de 38 anos, e António Gonçalves, de 29, “após um delicado entendimento entre a família ‘Geadas’ e o Grupo Pestana”, revela António Gonçalves, um apaixonado pelos vinhos e sommelier do G. “A ligação à pousada existe desde sempre, pela mão do nosso pai, que aqui começou a trabalhar tinha, então, 12 anos, sendo esta a sua escola, a escola que guardou para a vida”, explica.
O G da Pousada de São Bartolomeu
Desde então, o desafio ao palato de locais e forasteiros tem sido uma constante, em crescendo, no G, graças à criatividade, à harmonia dos sabores, de acordo com a sazonalidade dos produtos, ora da terra fria, ora da terra quente. Do que a terra dá. De Trás-os-Montes. Graças à “procura do enaltecimento dos produtores e dos produtos, da cultura portuguesa e, em particular, da transmontana, uma cozinha naturalista com uma forte componente tradicional” numa cozinha “em que, claramente, procuramos mostrar o melhor que se pode fazer com tudo o que facilmente nos vem parar às mãos, tudo o que é digno deste imenso ‘Reino maravilhoso’”, terra natal de Adolfo Rocha, que se fez Miguel Torga no universo literário, continua António Gonçalves.
E é pela sazonalidade dos produtos, respeitada com primor na cozinha do G, que a carta é alterada a cada seis meses, “no solstício correspondente a cada época”, explica. Eis o pretexto para a abordar, primada pelos sabores rústicos e sublimada pela criatividade. No prato.
“Esta proximidade entre nós e o produtor faz com que conheçamos melhor o produto”
As boas-vindas à mesa são dadas por um vinho verde da Casa da Calçada servido por António Gonçalves. “A nossa filosofia é: ‘Quanto mais perto, melhor’. Esta proximidade entre nós e o produtor faz com que conheçamos melhor o produto”, justifica o sommelier do G reforçando, uma vez mais, a importância dos produtos locais.
Para entreter o palato dos comensais, o chefe Óscar Gonçalves apresenta um saboroso brioche, “caseiro” de cogumelos com bolinha de manteiga. Segundo António Gonçalves, o objetivo é “fazer os pães de norte a sul do país”. Uma viagem com destinos diferentes para cada semana no G da Pousada de São Bartolomeu.
Da conversa passamos para a entrada servida numa caixinha de surpresas cunhada a ferro “com a marca da casa mãe: o G”. Abrimos a tampa. Lá dentro, a bolinha de alheira crocante com amêndoa por fora derrete-se, depois, na boca, conquistando o palato de todos. Para acompanhar, António sugere um espumante Caves de Murça Branco Bruto, concebido a partir de castas tintas.
A (re)entrada no repasto cabe, desta vez, a um falso ravioli, protagonizado por gambas, recheado com pleorotus ostreatus, em caldo suado de pernil de porco bísaro “sem gordura”, assegura Óscar Gonçalves, a qual “é retirada”. À mesa veio também a sardinha com pimento, como manda a tradição, e centeio, barriga de porco fumada, regada com azeite de carvão – “com toros de oliveira”, diz-nos Óscar Gonçalves. A generalidade dos sabores em absoluta harmonia com um Muxagat rosé 2012, do Douro Superior, para o qual Mateus Nicolau de Almeida se inspirou nos rosés do sul de França, nas vinhas de Muxagata, entre Foz Côa e Mêda.
Continuamos nas mãos do chef, que nos traz um deleitosos trio de castanhas, aipo e camarão tigre para o prato de mar, seguido de um suculento robalo ao lado de cuscus feito como manda a cozinha transmontana, isto é, com trigo sarraceno. Uma tradição judia que permanece na gastronomia da região. De Baco vem o Marquês d’Almeida branco 2011, da CARM, para o primeiro, e um Bom Karácter Seleção Rui Madeira branco 2011, de Rui Reboredo Madeira.
Chega a vez da carne. Para o primeiro prato, Óscar Gonçalves sugere pombo torcaz, muito comum do nordeste transmontano, com carqueja, outro prato forte da região , boletos, espargos e trigo sarraceno, e molho deglaçage, numa apresentação que ilustra o habitat do pombo. A rendição absoluta do palato culmina com um Quinta das Corriças Reserva tinto 2011, um vinho de Trás-os-Montes que acompanha o coelho recheado com migas, feijoca e esparregado de urtigas, produtos do nordeste do país, confecionados por quem sabe.
Agora juntemos o açúcar ao repasto e teremos a sobremesa. Duas, para fazer contas certas e terminar em grande, com um capuccino, parfait e biscoito de castanhas, ganache de chocolate e café; e um torrão com frutos de outono, merengue recheado com creme de requeijão e abóbora e sorbet, ao quel o chef deu o nome de Montblanc. Sobre a companhia de Baco guardamos segredo.
Sobre o guião de pratos do G, António Gonçalves faz a súmula traduzida em palavras sensatas: “A criatividade é uma linguagem estética que nos transporta para um cruzamento entre uma profunda ruralidade feita de tradições e sabores.” No âmbito do legado de Baco, as experiências em redor da mesa do G são feitas a par “de novas referências vínicas” cuja procura é uma constante. “A minha paixão pelo vinho não se resume ao singular líquido, mas a todo o contexto histórico-sociológico e cultural que dele advém a par com as harmonias e os contrastes, e isso torna a experiência do comensal claramente muito mais divertida”, remata.
No Geadas de Bragança
A cozinha do G é, nada mais, nada menos, que um assunto de família envolto em história, costume e tradição. Numa paixão que dita duas gerações – os pais, Adérito e Iracema Gonçalves, e os filhos, Óscar e António Gonçalves –, que começa com o roteiro pela gastronomia transmontana num estabelecimento em Vinhais, a vila natal de Adérito Gonçalves onde, por causa dos preços, os locais diziam, por brincadeira, “queimas como geadas”, conta António.
Assim nasce o Geadas, um dos mais emblemáticos restaurantes da cidade de Bragança, erigido há cerca de três décadas na margem do rio Fervença, com “a nossa grande mestre cozinheira” Iracema Gonçalves, segundo palavras de António, na cozinha, lugar ocupado por Óscar “Geadas” na sua ausência, para confecionar o que a terra transmontana dá aos comensais.
Para iniciar o almoço amistoso, seguido de uma viagem por terras do norte, o chef apresenta pleorotus ostreatus com chouriço e croutons de pão de trigo.
E porque os pratos de caça são receita de excelência em terra fria, Óscar Gonçalves elege a lebre num arroz de cabidela, “uma tradição em Trás-os-Montes”, declara António.
Para o fim, a suculenta posta mirandesa de Vinhais, assada na brasa, fez jus à culinária transmontana e de Óscar Gonçalves, que tão bem aprendeu a cartilha da gastronomia do nordeste do país, com a mãe, Iracema Gonçalves que, no início de dezembro, recebeu a distinção da Academia Portuguesa de Gastronomia pelas mãos de Maria de Lourdes Modesto.
António Gonçalves, sommelier do G, Adérito Gonçalves, um dos fundadores do restaurante Geadas, Leonel Pereira, chef do restaurante São Gabriel, em Almancil, Óscar Gonçalves, chef do G, e João Viegas, sub-chef do São Gabriel
Eis a prova de que os genuínos sabores da cozinha de Trás-os-Montes são o prato forte no Geadas e que a mesma tradição à mesa é respeitada pela descendência, em particular por Óscar “Geadas”, que se compromete a confecionar os consagrados pratos do restaurante, levando à mesa a culinária de outrora envolta em criatividade, graças a um legado que vem da terra e de quem tanto sabe.
Com duas boas razões para (re)descobrir Bragança, à mesa, para quando uma viagem a Trás-os-Montes? •
+ Restaurante Geadas
+ Pousada de São Bartolomeu
© Fotografia: João Pedro Rato
Para partilhar com os amigos