Tempo. Tempo para dançar, cantar, representar. Tempo para existir, ser, entender. Tempo para descobrir Adriana Queiroz que, de palco em palco, nos vai apresentando o seu mais recente espetáculo “Tempo”.
A uma bailarina era impreterível colocar, a cada questão, posições e passos de Ballet que estão, de alguma forma, no nosso imaginário. Assim, não estranhem os “pliés” e “arasbesques“. A uma cantora singular só podíamos dar-lhe espaço a entoar palavras com cadência primorosa, a cada resposta dada. Adriana Queiroz, indelevelmente bailarina, cantora… artista, aqui, num pas de deux de perguntas e respostas.
Primeira posição et plié…
Quem é a pessoa por detrás do corpo que dança na voz e canta na dança?
Uma pessoa como as outras, com os seus defeitos e algumas qualidades. Uma solitária com tendências para a eremitagem – quando mais miúda chamavam-me bicho do mato; mais velha já me apelidaram de desapegada. É sempre mais fácil etiquetarmos em vez de tentarmos compreender. Uma mulher independente, teimosa e determinada, que vive em conformidade com os seus princípios e valores, tentando sempre levá-los a quem me rodeia. Alguém que preza a amizade como forma de amor, acima de tudo, e que tem nos seus amigos os anjos da sua vida. Um ser que continua a acreditar que a família deveria ser o sustentáculo da sua existência. O meu Pai dizia-me “Não é cansativo viver assim?” – É Pai, é. Mas seria muito mais cansativo ver o Mundo a desmoronar à minha volta e apenas me preocupar com o meu umbigo e o meu bem-estar.
Segunda posição et tendu…
Que leva a bailarina ao Ballet e a voz ao canto? Como definiria ambos, para si?
O que leva uma criança a escolher uma profissão? O sonho. A capacidade de sonhar, de imaginar, de inventar – aquilo que tentam retirar às nossas crianças hoje. O prazer. Um enorme prazer. Só ele pode justificar tanta dor, tanto sacrifício e tanta abnegação. Será sempre a minha forma de comunicação por excelência. Transmitir emoções através da dança.
À voz cheguei pela palavra, não pelo canto. Foi uma consequência. Mas se pensarmos que a minha bisavô era cantora lirica, o meu avó também, a minha tia igualmente, e os meus pais chamam-se Tomé de Barros Queiroz e Mimi Gaspar poderemos dizer que não foi consequência, mas sim sequência. Dança, canto, teatro: alimento da minha vida.
Terceira posição et élevé…
São a Dança e o Canto complementares, um só, independentes que vivem bem juntos ou algo mais, na Adriana?
A Dança, o Canto, o Teatro não são complementares na minha vida, são um só. Estar em palco e conseguir transmitir emoções, fazer as pessoas sentir, pensar e sonhar, é a função e a essência da minha profissão. E eu com toda a humildade – embora seja, para sempre, Bailarina – sou, por profissão, artista.
Quarta posição et posé…
Enquanto alma que tem em si mesma o talento de diferentes expressões artísticas, é importante viajar e variar nos modos de existir em palco? É esta diversidade que faz a mais artista?
A diversidade faz-me crescer, sim. Infelizmente desde que comecei a assinar os meus trabalhos deixei de ser convidada para trabalhar com outros criadores. Impõe-me este isolamento uma maior necessidade de ver, de ler, de procurar. É mais difícil, mas é tudo uma questão de disciplina. Porém, tenho saudades de passar os dias enfiada num estúdio à procura, à procura… agora, procuro dentro de mim e bebo o que me rodeia.
Quinta posição et entrechat…
Pelo timbre, pelo movimento, pelo cenário e figurino viajámos, intensamente, para um mundo apaixonante de Weill. Agora somos convidados para outro, francês, tão mágico. Para quem não conheça os nomes que se vivem, que têm eles que a levam a criar um espetáculo assim?
O que eles têm em comum é o facto de todos terem povoado a minha infância. E este “Tempo” é um espectáculo sobre a memória. A minha e a dos espectadores. E é tão fácil com estes temas – que mesmo que não nos sejam conhecidos, todos os conhecemos um pouco.
Boris Vian, Brel, Leo Ferré, Barbara, Trenet, Gainsbourg, Piaf et fouetté…
Qual (quais) destes é, na música, um elaborado fouetté que mais desafiante foi a trazer para o espetáculo “Tempo”? E porquê?
Cantar qualquer um destes monstros sagrados, destes poetas cantautores, é um desafio. Não houve um mais difícil, houve dificuldade na escolha dos temas pois a “chanson française” tem um repertório vastíssimo e com melodias interporias, e maravilhosas. Será talvez mais difícil, para alguns, ouvirem Jacques Brel, pois há esta tendência a achar que Brel não se canta, pois nunca ninguém o cantará como ele. Também sou da opinião que ninguém o cantará como ele, mas acredito numa arte viva que se tem que passar de gerações em gerações. Por isso os canto, esperando que novas gerações saiam dos meus espetáculos e que vão à procura dos originais, que ouçam a maravilha de um Jacques Brel a cantar o “Les vieux” ou o “La chanson des vieux amants”.
Bailados et arabesque…
No palco, a expressão corporal, o canto e um piano e multimédia. Porquê só um piano, porquê um cenário dinâmico na imagem, em palco consigo?
O piano não funciona aqui como um instrumento “acompanhador” é o outro solista em palco. É ele que me faz evoluir, dramaturgicamente, da dança para a música. E quando esse piano é tocado pelo Filipe Raposo, esse mundo torna-se em algo de musicalmente superior. Os filmes que estão a ser projetados atrás de mim funcionam como as minhas memórias e são um terceiro solista. Têm tanta importância como a minha performance enquanto cantora ou a do Filipe enquanto músico.
Finalizando os oito tempos que ditam o compasso do Balllet et grand jeté…
O que é o “Tempo” que aqui nos entregam e nos fazem viver? O que nos querem transmitir por entrelinhas dos segundos?
“Tempo” é um espetáculo que foi criado durante um periodo da minha vida muito confuso. Tive um acidente de trabalho – a dançar – e furei a menbrana que rodeia a espinal-medula. Foi um ano em casa, deitada num sofá em que só me levantava para ir para os tratamentos todos os dias e para onde regressava para gemer o resto do tempo, sem saber quais as lesões com que iria ficar. Mas, uma vez por semana, o Pedro Joía, diretor musical do meu primeiro disco “Ariadne” e enorme amigo, entrava em minha casa para ensaiarmos. E uma vez por semana a minha vida sorria. O resto do tempo pensava em como reconstruir a vida, pensava muito em todo o meu passado de bailarina e, sobretudo, ouvia o tempo a passar lá fora.
E foi desta ideia, desta mulher que não conseguia fazer nada, que só se sentia novamente viva quando cantava e que era acompanhada pelas memórias de infância (a musica francôfona) e por todas as suas memórias e sensações físicas de Bailarina que nasce este “Tempo”. Nas entrelinhas está toda a emoção de momentos de vida, da minha e da dos espectadores. Foi para que as pessoas se pudessem abstrair da minha dramaturgia que o espetáculo tem três níveis – o meu, performativo; o do Filipe, musical; e outro imagético, ainda mais presente. Para que se possam perder em qualquer um deles nas vossas memórias.
Tempo é o surpreendente projeto musical em que Adriana Queiroz se debruça, envolve e enamora com a música francófona da nossa memória comum, apresentando-nos alguns dos seus cantautores mais representativos, gigantes da história da música. Destacam-se Jacques Brel e Leo Ferré, sem no entanto esquecer o “[…] mundo emocional de Barbara, o encantamento de Trenet, a loucura de Gainsbourg, o surrealismo de Boris Vian, a intemporalidade de Piaf (que não sendo cantautora é figura incontornável da música francesa do século passado).”
Adriana Queiroz sobe hoje, dia 19 de novembro, pelas 21h30, ao palco do Auditório do Conservatório de Música de Coimbra e é um espetáculo obrigatório, imperdível. •
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© Fotografia: Rodrigo Souza.
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