Na Galeria Filomena Soares, em Lisboa, deixe-se conduzir pela mão de Rui Chafes. Até ao dia 18 de Março de 2017, Incêndio convoca-nos a confrontar a vida e a morte, enunciando uma passagem que, atravessada, e havendo justiça, não nos deixará imunes.
Cristina Campo, escrevendo em meados do século passado, portanto, o XX, lamenta o excesso de imaginação que percorre a arte contemporânea, e que contribui, através de uma fragmentação excessiva, para a confusão de planos. Contrapõe a tal excesso o critério da justiça, entretanto alheado; cremos que ligado ao justo, esta mulher que alguém já qualificou de uma espécie alternada de monja e fada, lhe associaria a economia.
Pois bem: é justiça o que vamos encontrar em Incêndio; nem mais, nem menos. Duas salas, duas evasões. Sem que o escultor fixe um percurso, que poderia ser aqui confundido com um sentido cristalizado, e impositivo, melhor nos sugere a possibilidade de vogar entre a escuridão lapidar e a luz iridescente. Também a nós nos é difícil enunciar um começo; na verdade, as duas evasões estão de tal forma mescladas, como se se tratassem de gémeos siameses, que desejaríamos invocar aquela cornucópia da abundância que Mário Cesariny sugere para a persistente intuição de Maria Helena Vieira da Silva, e que a linguagem poderá falsear, ou pelo menos não dizer toda. Assim, parece que estamos perante um livro aberto, e em que as duas páginas que se oferecem ao olhar exigem uma simultaneidade absorta; algo da ordem da percepção, e não já da visão. Seria em relação com esse ponto cego, que agora já não está nem numa sala, nem na outra, que gostaríamos de vos falar de Incêndio.
Ainda assim, Incêndio incorpora É assim que começa…; pelo que, caindo em tentação, podemos precisamente por ali começar. Então, a hesitação impõe-se: trata-se de uma ressurreição, à qual se sucede um ameno passeio no horto; ou trata-se de um encontro derradeiro, ao qual se sucede uma morte anunciada? Rui Chafes retrata fissuras íntimas que nos colocam perante a vida e a morte. Dar sentido a uma morte, como o defende Walter Benjamin, será resgatar toda uma civilização; que daí brote o íntimo trabalho das mãos, na firmeza do bronze, é significativo. O bronze é eterno, já o diz John Berger a propósito de parte da obra de Brancusi; aqui, em É assim que começa…, em nada deverá confundir-se com uma tradição funerária, mas com o gesto, firme e sincero, de reconhecer às mãos a sua justiça, e ternura. Parte das pequeninas esculturas que nesta vitrina podemos admirar, e que o escultor diz ter sido ele próprio a construir (a vitrina), vêm de outros tempos: de uma exposição realizada em conjunto com João Miguel Fernandes Jorge na Cinemateca Portuguesa, no ano de 2009; as restantes são agora mostradas num lusco-fusco a que Rui Chafes chamou, também, de “incubadora”.
Já em Incêndio, e que Rui Chafes tem dito tratar-se de uma catedral que ardeu, dela tendo restado os seus vestígios calcinados; melhor ali vemos um horto tranquilo, a prenunciar uma caminhada amena que emoldura uma conversação habitada pela claridade. Registamos o facto de que cada escultura vertical, colocada de tal forma que delineia o caminho, brota da terra: o que prenuncia raízes. Não vemos aqui paganismo, mas sim solidez. Tendo em conta que este escultor, e para inúmeras instalações anteriores que construíram o seu percurso, nos tem obrigado a desafiar as leis da gravidade ao encaminhar-nos o olhar para o alto, seja porque suspende as sombras que nos propõe, seja porque, numa espécie de magia, as deixa a pairar; será sintomático que agora as radique.
Rui Chafes tem dito que começou há muito pouco tempo, e que este, o tempo, é o seu melhor amigo, quase uma espécie de anjo que protege. Arrisco afirmar que, uma vez que dá os seus primeiros passos somente desde 2014, este escultor é agora um menino, que aprende, enfim, a brincar com o fogo. Tendo nascido velho, como também já afirmou, podemos certamente aguardar pelas suas travessuras.
Para ver na Galeria Filomena Soares, Lisboa, até ao dia 18 de Março. Localização: Rua da Manutenção, nº 80 (Xabregas). Horário: de Terça a Sábado, entre as 10h e as 20h.