Dia 1 de Dezembro, da Restauração da Independência, foi também aquele em que Frederico Dinis apresentou na Capela do Prado do Repouso, localizada no cemitério do Porto com a mesma designação, perhaps only as a memory.
Percorrer um cemitério calmamente, como quem atravessa um jardim, ou um bosque, pode eventualmente aparentar ser, para algumas pessoas, uma opção algo mórbida. Mas foi exactamente o que fiz na tarde de dia 1 de Dezembro de 2018, sensivelmente pelas 16 horas: percorri a via principal do Cemitério do Prado do Repouso, na cidade do Porto, para chegar à entrada sul, aquela onde se localiza a bela capela neoclássica de planta octogonal. Motivo: assistir à intervenção sonora que Frederico Dinis em tal capela iria encetar pelas 17 horas. Ainda houve tempo para trocarmos umas breves impressões antes mesmo do início: será uma blasfémia ocupar uma capela de um cemitério com música electrónica? Então, fiz uma retrospectiva do caminho interior até aí percorrido e senti na pele a herança do Iluminismo: o entranhamento laico. Todavia, tais entranhas apenas se revolvem pela contaminação de outra herança: a cristã.
Inevitável, perante o desconforto, desenrolar-se uma reflexão em torno da questão da morte: talvez estejamos hoje mais próximos dos Romanos, relativamente a ela, do que do Cristianismo. Afinal, os Romanos situavam as necrópoles fora dos limites internos definidos pelas muralhas das suas cidades; o Cristianismo, pelo contrário, enxertou os enterramentos no coração das povoações. Mas, pese embora um determinado hedonismo contemporâneo, creio que, em face dos lapsos de tempo criados pela burguesia, o carpe diem não se cumpre. Assim, é como se não se verificasse uma coincidência com a época, uma não aderência primordial, o que provoca, por um lado, um adiamento de si, por outro, uma descrença evidente.
Começa, entretanto, a intervenção de Frederico Dinis: perhaps only as a memory. A Capela do Prado do Repouso manifestou uma capacidade de propagação do som excepcional, o que tornou o momento completamente convocador e envolvente. Frederico Dinis trabalha especificamente o lugar, “explorando ao longo [do seu] processo de investigação e de criação a intersecção entre a arte, a tecnologia e o espaço”, como se podia ler na folha de sala disponibilizada; nestes termos: o que aconteceu? Aconteceu, na minha perspectiva, uma espécie de lugar-película e, simultaneamente, uma história a partir dos sons, aquela que a seguir desvendo. Além das pessoas que assistiam, tínhamos por companhia os Doze Apóstolos, representados com leveza nas paredes da Capela.
Inicialmente, pareceu-me ser um som “sujo”, de vozes misturadas com grãos e vento, e ainda espíritos, sendo que ao longe se avistaria um prenúncio melódico. A seguir: uma pausa, e depois recomeça de outra forma. Então, começa a formular-se dentro de mim uma sequência que suporta uma história que se desenrola. Alerto para o facto de as sonoridades abrirem para paisagens visuais. Acomete-me uma dúvida, a mesma que Giorgio Agamben formula num momento específico de Ideia da Prosa: numa sociedade de massas imersa no ruído, como ouvir a música? E, se não se ouve a música, como alcançar uma melodia comum?
A história: composta por 9 momentos, em que se perfilam também os intervalos. Assim: 1º Murmúrio; 2º Cansaço (intervalo); 3º Noite; 4º Amanhecer (intervalo); 5º Dia; 6º Canção de Embalar (intervalo); 7º Sono ou Sonho; 8º Acordar (intervalo); 9º Melodia Comum. Aquilo a que chamo intervalos são momentos breves, que separam as partes mais longas. O último momento, aquele a que chamo Melodia Comum, é, na verdade, uma luta em determinadas sequências: como se o humano fosse isso, o desejo absoluto de não permanecer no desconcertante e anónimo il y a que Emmanuel Levinas descreveu tão bem. E tudo começou aí: o Murmúrio é, parece-me, esse anonimato insustentável e perigoso, mas abrangente. No fim, enuncia-se o bater de um coração. Quando acabou, e de repente, regressamos à Capela do Prado do Repouso. E digo regressamos porque, durante cerca de 50 minutos, andámos à chuva, percorremos bosques, fomos visitadas por criaturas mágicas, rimos e chorámos.
Lê-se também na folha de sala: “perhaps only as a memory é uma performance de música eletrónica ambiental que procura envolver o público numa névoa de recolhimento, numa experiência meditativa e intimista, pensada para usufruir e fruir o espaço de apresentação.” Não se duvide!