As partes “menos nobres” dos animais passam, a partir de agora, a ser um bálsamo para os gourmands de Lisboa, e não só, ou não tivesse José Júlio Vintém trazido para a capital portuguesa a tão badalada cozinha que tem vindo a fazer em Portalegre.
A arte digital é criada por Rodrigo Alarcão, numa alusão à pintura rupestre
José Júlio Vintém, chef reconhecido nascido, em 1972, em Portalegre, valoriza e cozinha, com a sabedoria de outros tempos, as “menos nobres” partes dos animais. O jeito apanhou-o com uma senhora, D. Benedita, exímia cozinheira – a julgar pelas suas palavras –, com a particularidade de dar azo ao ofício como se fazia antigamente: ao lume. “Adoro cozinhar essas partes. Faço-o desde que abri o restaurante. São mais saborosas! Sempre me fascinou desafiar as pessoas a comerem coisas que não conhecem. Há quem as coma, porque sentiam saudade e as que gostam de criar coisas novas”, justifica José Júlio Vintém.
Muitos anos passaram e eis que transporta todo o seu conhecimento e execução para os números 2, 4 e 6 da Rua do Corpo Santo, junto ao Cais do Sodré, em Lisboa. O nome é bem sugestivo: Picamiolos. A sugestão deste foi dada por Leonor Brito, mulher de Ricardo Santos. Empresários na área da restauração, ambos tornaram-se sócios do chef nesta sua nova aventura gastronómica, depois de quatro anos de intensa procura de espaço e de como este seria concebido. “O Ricardo tinha sido recomendado por um amigo para ir ao meu restaurante, em Portalegre. Ficou doido com a comida do Tomba Lobos!”, conta José Júlio Vintém.
O restauro e os interiores contam com a assinatura do atelier liderado pelo arquitecto Tiago Silva Dias
O resultado está à vista. Junto à entrada do Picamiolos, no piso térreo, está um bar e uma imponente escultura da cabeça de um porco gigante. A peça, assinada por Catarina Catalão, é feita em esferovite e revestida a fibra de vidro e resina, tal como as outras duas figuras anatómicas das cabeças de vaca e de carneiro expostas no primeiro andar do restaurante. O chão é vermelho, alusivo ao pavimento velho e gasto das tabernas antigas. O espaço, que se estende até à sala de trás, contígua à garrafeira – com mais de 600 referências vínicas –, reserva 24 lugares destinados, a partir da próxima segunda-feira, dia 3 de Dezembro, aos almoços, com comida de tacho, e às tertúlias vespertinas, entre as 12 e as 16 horas, acompanhadas de petiscos e um bom copo de vinho.
Pão alentejano e os patos de azeitona e de fígado de aves
No primeiro andar, luminoso e acolhedor, as mesas de madeiras escuras “casam” com as confortáveis cadeiras e o chão. Além das duas referidas refeições contam-se, ainda, os jantares neste espaço com três comedores privados acomodados sob o tecto abobadado. A arte digital, de Ricardo Alarcão, alusiva às pinturas rupestres, não deixa margem para dúvidas: nesta casa tudo é aproveitado. A alusão disso mesmo é a frase “Vou-te comer” disposta ao lado da projecção de um mamífero ruminante. A autoria do restauro é, por sua vez, do atelier de arquitectura Silva Dias.
Pétalas de toucinho, o clássico de José Júlio Vintém, está na carta do Picamiolos
À mesa há molejas de borrego, focinho de porco grelhado, miolos de borrego panados, orelha de porco grelhada, para começar. Em destaque está, como é de esperar, o clássico deste cozinheiro: as pétalas de toucinho. Isto é, as fatias de toucinho finamente cortadas, hábito alentejano que José Júlio tornou célebre, as quais são aquecidas no prato e servidas com alho e tomilho-limão. Mas há uma outro petisco que não consta na carta: pica-pau de lombelo. Um suculento músculo cozinhado com molho à base de Vinho do Porto. Sem esquecer as costeletas de coelho fritas que fizeram as delícias de quem, desde pequeno, sabe apreciar comida tão boa.
Pica-pau de lombelo
A qualidade do produto é um requisito, bem como a sua origem, que se quer alentejana. “Hoje em dia é relativamente fácil levar essas coisas boas do Alentejo. Consigo arranjar fornecedores que têm esse produtos, como o do Tomba Lobos que também os levam para Lisboa”, afirma o chef. “Antigamente, essas partes eram mais baratas. Agora não, devido ao aumento da procura, sobretudo no Inverno, por causa das feijoadas e das sopas”, explica.
As deliciosas costeletas de coelho com mel e tomilho-limão
José Júlio Vintém não deixa, porém, passar a branco a época em que as partes “menos nobres” perderam a sua importância nas cozinhas do país, consequência do facilitismo nos hábitos de consumo em muitas casas do país. Realidade que começa a desvanecer: “já há restaurantes que estão a aproveitar tudo das carcaças.” Neste contexto, o chef de Portalegre acredita que “saímos da cozinha do show off. Neste momento, está na moda a cozinha tradicional, a cozinha de produto. Continua a haver muito cuidado com a apresentação mas, agora, o produto é a estrela.” Esta mudança também é visível nos sítios onde se vende carne. “É fácil ver, por exemplo, orelhas de porco – não estou a referir-me ao porco preto, mas sim ao de carne branca – mais caras do que o lombo.”
Rabo de boi cujo sabor, mais intenso, é equilibrado com o puré de cherovia
Continuemos com a carta. Rendida à cozinha tradicional, particularmente à do Alentejo, salta à vista a sugestão rabo de boi com puré de cherovia (semelhante à cenoura) e chips de batata-doce salta à vista e conquista o palato à primeira garfada. A recomendação é feita pela casa, tendo em conta a entrada escolhido, para que a satisfação sacie o estômago e a alma. Touro bravo grelhado, porco preto grelhado com migas e arroz de bochechas de bacalhau são outras das propostas inscritas na lista. Mas, atenção: os pratos vão rodando. Portanto é bem possível que ao ir ao Picamiolos haja um ou outro que não conste na carta.
Boleima com gelado de caramelo salgado, a dupla do momento
Para a sobremesa sai um pudim de queijo fresco com abóbora e uma boleima perfeita acompanhada de gelado de caramelo salgado. Uma doce dupla a encher as medidas dos mais gulosos dos clientes.
Pudim de queijo fresco “de comer e chorar por mais” com abóbora
Curiosos? O melhor é ir. Se quiser reservar, faça-o através do 215 890 487. Bom apetite! •
+ Restaurante Picamiolos
© Fotografia: João Pedro Rato
Legenda da foto de entrada: A peça foi pensada e executada por Catarina Catalão