A internet como arquivo do efémero

Estabelece-se um desafio quando se pensa em revisitar obras de arte de natureza efémera, como é o caso da performance ou do happening. A sua experiência não é apenas única e irrepetível, mas imaterial no sentido em que não pode ser retirada daquele espaço-tempo e reproduzida.

Tratando-se de um evento que desdobra o tempo, é singular no sentido em que depende de uma particular combinação de elementos num determinado momento. Mas há algo que permanece: a sensação localizada tanto no corpo como na mente; uma impressão de que algo aconteceu tanto cognitivamente como ao nível da sensação. Devido à natureza intangível da experiência destas obras-evento, a memória torna-se um elemento importante no que diz respeito ao seu arquivo; e a internet – em particular, as redes sociais – torna-se o seu repositório, surgindo como um novo espaço de memória colectiva.

Existem certamente algumas relações em tempo real no momento em que a obra-evento acontece, mas é a impressão e a memória de experiências singulares, reais, mas virtuais, que aqui apresentam maior relevância. A internet permite uma espécie de reconstrução destes encontros originais, incluindo implicações de subjectividade que a interacção na própria internet implica. Assim, coloca-se esta ideia em paralelo à actual revolução dos museus, ou ao privilégio que estes constituíam até que a sociedade actual entregou todas as coisas, “incluindo obras de arte, ao fluxo do tempo.” (Groys 2016, 2)18 

Boris Groys fala-nos no conceito de Reologia da Arte, ou seja, a discussão e pensamento sobre arte como um fluído, em que os museus se encontram submersos no fluxo do tempo e, lugares que costumavam abraçar colecções permanentes, são agora palco de projectos de curadoria, leituras, performances, happenings em constante mutação. De acordo com Groys, no nosso tempo a arte circula permanentemente de exposição em exposição, de colecção para colecção, envolvendo-se cada vez mais no fluxo do tempo. Assim, ao abandonar a contemplação repetida da mesma imagem significa que a arte abandonou o projecto de escapar à prisão do presente, não por resistir ao fluxo do tempo, mas por colaborar com ele. Se todas as coisas presentes são transitórias, então é possível e necessário antecipar o seu eventual desaparecimento. A arte contemporânea consiste precisamente na prefiguração e imitação do futuro no qual as coisas, agora contemporâneas, irão desaparecer. Esta imitação do futuro não pode produzir obras de arte, mas apenas eventos artísticos que demonstrem o carácter transitório do presente. (Groys 2016) 

“Os eventos artísticos actuais não podem ser preservados e contemplados como as obras de arte tradicionais. No entanto, podem ser documentados, narrados e comentados. A arte tradicional produziu objectos artísticos, e a arte contemporânea produz informação sobre eventos artísticos.” (Groys 2016, 4)

É precisamente isto que torna a arte contemporânea, em particular as obras-evento, compatível com a internet. O arquivo tradicional funcionava, segundo Groys, numa lógica de retirar o objecto do fluxo do tempo e colocá-lo sob protecção. Walter Benjamin descreveu este efeito como “a perda da aura”. Ao ser retirado do fluxo material, o objecto torna-se uma cópia dele mesmo, contemplado para além da sua inscrição original no “aqui e agora” do fluxo material. Uma peça de museu é um objecto menos a sua aura original. (Groys 2016) O arquivo digital, pelo contrário, ignora o objecto e preserva a aura. O que permanece é a metadata, a informação sobre o aqui e agora da sua inscrição original no fluxo material: fotografias, vídeos ou testemunhos textuais. O objecto do museu sempre precisou de uma interpretação que substituía a sua aura perdida. A metadata digital cria uma aura sem objecto. Por este motivo é que a reacção adequada a esta metadata é a reencenação do evento documentado, numa tentativa de preencher o vazio que ficou no meio da sua aura. 

Estas duas formas de documentação não são novas, mas o modelo actual — a internet — chega indubitavelmente a uma audiência muito mais alargada do que a própria obra de arte. No entanto, apesar de inteiramente diferentes, permanece a questão de que o fluxo material é irreversível porque o tempo não anda para trás. Ao estar imerso no fluxo das coisas, não podemos voltar a momentos anteriores no tempo ou experienciar eventos do passado. A única possibilidade de retorno reside nas ideias eternas de deus, ou na sua forma profana que são os museus e a eternidade que prometem. (Groys 2016) 

Segundo Groys, a internet funda-se precisamente na possibilidade de retorno, já que todas as acções podem ser refeitas e toda a informação recuperada e reproduzida. A internet não é um fluxo, mas o seu reverso. A arte não prevê o futuro, mas demonstra o carácter transitório do presente, abrindo portas para o novo, num futuro em que as ordens que definem o nosso presente perderão poder e irão desaparecer. Assistimos online, portanto, ao emergir de um novo arquivo, o arquivo do efémero.

Legenda da imagem de entrada: “Performance de Mrs. Vaginal Davis na Groove Ball, Maus Hábitos (Porto, 2018).
© Fotografia: Miguel Barrabás

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