No ano de 1970, Clara Menéres propõe um célebre Relicário, constando de um falo em resina recolhido numa pequena caixa preta com duas portas simétricas. No ano passado 2018 a Fundação Calouste Gulbenkian expô-lo numa ocasião em que se viu arte pós-pop.
Existe algo de bastante soturno na proposta corrosiva de Clara Menéres. Afirmo corrosiva num duplo sentido: pela acidez simbólica e pela pertinência histórica. Algo de bastante soturno, pelo seu lado, relacionado com a obra de forma intrínseca, ou seja, com a materialidade específica desta escultura. Veja-se: utilizam-se materiais transparentes, reluzentes e escorregadios, seja a resina do falo, seja a madeira lacada da caixa que o abriga, mas, paradoxalmente, e pese embora tais características possam indiciar leveza, tudo é ali pesadamente fúnebre. Já no que concerne à acidez simbólica e à pertinência histórica, que concorrem para uma corrosão evidente, julgo que se relacionam exemplarmente com a soturnidade apontada. Expliquemo-nos. A obra de arte emite sinais na medida em que se tece uma trama a partir da sua operatividade constitutiva; nesta medida, e para o Relicário que agora temos em mãos, tal significa que o falo em resina e a caixa de madeira lacada estabelecem uma conexão íntima que deverá ser interrogada, ao invés de isolar o falo, por exemplo, que se tornaria significante despótico, porque o falo vem inequivocamente abrigado numa caixa e esta tem também uma existência, e consistência matérica.
Neste contexto, a obra de Clara Menéres promove um eclipse simbólico e histórico-social: porque mostra um falo entumecido à luz do dia e porque o faz em Portugal. Ora, nestes termos podemos falar em corrosão: porque é uma mulher escultora a usurpar um símbolo essencial da masculinidade e a expô-lo sem equívocos; também o facto de o fazer num país macerado por uma ditadura longa e de silêncios ensurdecedores, em que António de Oliveira Salazar, o chefe de Estado, era figura paternalista e autoritária.
Entre 20 de Abril e 10 de Setembro de 2018, a Fundação Calouste Gulbenkian apresentou a exposição Pós-Pop. Fora do Lugar-Comum, com curadoria de Ana Vasconcelos e Patrícia Rosas e constando de obras de arte produzidas entre 1965 e 1975, em Portugal e Inglaterra: mais de 200 obras, 47 artistas. Pós-Pop. Fora do Lugar-Comum incluía três caixas negras, correspondentes a três salas, alusivas ao secretismo com que se desenrolavam diversas actividades em Portugal em tempo de Estado Novo, e uma delas refere a questão da sexualidade: nela se apresenta Relicário, bem como umas pequeninas esculturas de João Cutileiro.
A opção pelas três grandes caixas é apresentada pelas curadoras como espécies de buracos negros, ou seja: em tempo de Estado Novo, ditadura que coarctava em Portugal, inevitavelmente, a expressão artística para cujo desenrolar a liberdade estava desactivada, existiam eixos de vida ainda mais sensíveis e cuja voz apenas ressoava em interiores secretos. A sexualidade, portanto, seria tabu. Todavia, houve quem vislumbrasse nesta opção pelas caixas negras uma censura que, em tempos democráticos, não se compreenderá, até porque na específica que albergava a obra de Clara Menéres e as pequeninas esculturas de Cutileiro, portanto, na que avultava o sexo, se deixava um aviso à entrada: o de que a sala continha conteúdos sexualmente explícitos, para além de se “arrumarem” as quatro obras dentro de armários Assim, o Relicário, que já comporta uma caixa com a possibilidade de ser trancada, permanecia triplamente blindado no que respeita ao falo.
Quanto ao que aqui gostaria de reflectir, com o Relicário como horizonte, recai sobre a necessidade, absoluta, de fazer viver as obras de arte, inserindo-as na trama do quotidiano e tornando-as verdadeiros duplos de viver. Se o esconderijo da Gulbenkian acentua os “interditos”, mas toca simultaneamente em algo interessante a que já voltarei, o facto de se inscrever essa opção na “armadilha do politicamente correcto”, aliás expressão já com ressonância familiar, também neutraliza a vida de Relicário.
A razão pela qual considero interessante o “esconderijo” da Gulbenkian relaciona-se com algo que se evade a contrapelo do escancaro actual, no seguinte sentido: as imagens propagam-se soberanas por canais livres de divulgação abertos, por um lado, e, por outro, são tantas vezes apresentadas acriticamente em meios de comunicação social. No que respeita às obras de arte, Walter Benjamin traçou o que poderia vir a ser a sua vida na “era da reprodutibilidade técnica”: a perda da “aura”; mas também a possibilidade de novos usos. Ora, o facto de na exposição da Gulbenkian se trancar o sexo pode, em análise diversa, apontar não exactamente para o sexo como tabu, mas para a necessidade de a contrapelo, como Benjamin também queria, e cria, falar sobre ele de modo diverso. Considero que as duas vias mais óbvias para aceder a Relicário, e que foram anteriormente expostas, se encaminham para o assumir como um falo, unicamente, ou para o inserir num excerto da arte. A primeira neutraliza o seu impacto social; a segunda inviabiliza o seu discurso radical, bem como a sua estranheza enquanto obra. Curiosamente, a indignação perante a clausura na exposição de 2018 concorre igualmente para a sua redução a órgão sexual. Creio, por isso, que se torna necessário “falar” do Relicário, não como falo no seu desamparo, ou crueza, ou ridículo, ou interdito, mas sim na complexidade que tece com a caixa. E falar do Relicário dessa forma obriga a que nos detenhamos na sua operatividade constitutiva, recuperando o que enumerei inicialmente e conjugando, ainda, a corrosão e a soturnidade. Ser uma mulher a esculpir um falo e a religiosamente sepultá-lo significa que Clara Menéres afirmou eu “falo” e, simultaneamente, fez prover o universo feminino de uma visibilidade nova e, logo, da possibilidade de discurso.