“Eu e a Aldeia” ou Chagall “[…] e a Aldeia”, e eu

Em 1911, Marc Chagall, aquele que considero ser o pintor dos “olhos de amêndoa”, doces como a Ressurreição de uma certa beleza de que não podemos nunca despedir-nos, ainda que isso nos magoe, também pintou. 

Walter Benjamin afirmou que nenhum homem regressou das trincheiras rico em experiência, mas sim mudo, exangue, com as palavras murchas; concomitantemente, lamentava que a figura do narrador se tivesse tornado tão rarefeita, ao ponto de sermos inundado/as de actualidade, mas empobrecido/as de histórias para contar, e ouvir. Em outro contexto, quando John Berger, um incansável denunciador do sistema neo-liberal, tanto quanto do tardo-capitalismo viral, decidiu partir para o campo e aí fixar residência, algumas pessoas julgaram que estava a desistir de lutar em favor da justiça que havia sempre defendido, aquela justiça da História a que apenas os desapossados podem ainda aspirar, como também ele escreveu. Segundo a minha intuição, todavia, John Berger deslocou-se para o campo para poder ter um sonho muito específico, um sonho daqueles que apenas poderiam desenrolar-se no campo, mesmo.

O sonho de Berger, que ele descreve com bastante exactidão, consistiu em ter encontrado uma forma de entrar dentro das coisas, tornando-as mais naquilo que elas próprias são – únicas, e, de dentro, arranjar as suas aparências; não no sentido de parecerem mais belas ou harmoniosas, nem típicas porque representativas, mas sim tornar a vaca ou o balde de água ou a cidade, mais ostensivamente únicos. Pese embora nos conte ainda que, após o sonho, e já do lado de cá, perdeu o segredo que havia sido ali tão facilmente desvendado, tanto quanto posto em acção, segundo a minha intuição, ainda, e no inconsciente de John Berger, o “segredo” permaneceu altamente activo. Porque se existe, também, narrador contemporâneo a que possamos apontar o dedo, é a ele, precisamente: no meio das cinzas Berger encontrou sempre inúmeros cristais facetados, dando-nos a ver através de ângulos pequeninos uma beleza fina e delicada, por vezes dolorosa, como se durante um passeio pelo campo, e com os olhos postos no chão da terra, os nossos passos reluzissem através de pequeninas estrelinhas invertidas.

Ora, o que nos pode eventualmente desconcertar é que Marc Chagall, no ano de 1911, muito antes de John Berger nos ter contado este sonho, e depois de o ter tido vividamente, Marc Chagall, dizia, pintou este sonho; onde? Em “Eu e a Aldeia”, sim: não é engraçado e passível de nos desconcertar um pouco? Mas é verdade, eu quero acreditar que é verdade: “Eu e a Aldeia”, de Chagall, o pintor dos “olhos de amêndoa”, é a transposição visual do sonho de Berger. Como nos contos de fadas: em que abóboras se transformam em coches ou os grilos falam, em que uma picadela de alfinete proporciona um sono mágico…também aqui Chagall estava a assistir ao sonho de Berger, e pintou-o. John Berger ainda nos explica que, no sonho, a forma de entrar dentro das coisas condensava-se num gesto muito simples: abrir a porta de um armário. Neste momento, alguns e algumas de vós poderão estar um pouco desconfiados/as em relação a esta ilacção que tiro ou ligação que faço entre “Eu e a Aldeia” e o sonho de John Berger… 

Para aqueles/as que têm dúvidas respondo da seguinte forma: não é verdade que nos últimos tempos (digamos assim, últimos tempos, para não errar nas contas de cabeça, porque é ou 300, 200, ou 100, ou não sei exactamente quantos anos, depende daquilo que tivermos como referência) a humanidade abriu a porta do armário e soube tirar de lá fantasmas tão eficazes? Então, se soube tirar os fantasmas, também há-de saber chamar as fadas. Faço-me compreender?

Imagem de entrada: “Eu e a Aldeia” de Marc Chagall © 2020 Artists Rights Society (ARS), New York / ADAGP, Paris / Mrs. Simon Guggenheim Fund

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