El Greco e “Una fábula”, em 1580

Residente no Museu do Prado, situado na capital de Espanha – Madrid, este óleo de El Greco, intitulado “Una fábula”, tem permanecido como uma das obras mais enigmáticas que nos foi oferecida pelo pintor.

Em torno do ano 1580, portanto, El Greco estava a pintar “Una fábula”, o que coincide com a data em que em Portugal fazia entrada a Dinastia dos Filipes, também conhecida por União Ibérica. Não me parece que se possa estabelecer alguma relação directa entre os dois factos, todavia, também é verdade que, ao escrever aquele número, correspondente àquela data, foi inevitável pensar que de 1580 a 1640, esta a data correspondente à Restauração da Independência, o nosso país viveu de uma forma, digamos, diferente. Antes da composição que propõe em 1580, El Greco já havia pintado um rapaz a soprar o fogo, todavia, permanecia nessa ocasião o rapaz sozinho, sem proporcionar as interrogações resultantes da inclusão na cena, posteriormente, de um macaco e de um homem. O texto da ficha identificativa que acompanha “Una fábula” no Museu do Prado não consegue decidir-se: pintura de género? História moralizante? Exercício de criação artística? Alusão a pintor da Antiguidade Clássica focado por Plínio, o Velho?

E se for tudo isso: pintura de género + história moralizante + exercício de criação artística + alusão a pintor da Antiguidade Clássica + …? Porque de facto se trata de uma cena casual; porque, intitulando-se “Una fábula”, e incluindo um macaco e um rapaz e um homem, há a maior probabilidade de querer demonstrar-nos alguma coisa; porque, sendo El Greco, precisamente, El Greco, também será certo que exercitou, também aqui, a sua mão, bem como o seu precipício criativo; porque, tendo desejado ou não aludir a pintor da Antiguidade Clássica antes, o faz depois, depois quando passa a ter outra vida. E é aqui que chegamos, e é aqui onde devemos também fazer uma paragem.

Um/a artista, quando deposita uma obra no mundo, de certa forma, despede-se dela: não cria certificados de aforro. Uma obra de arte também pode ser como aquele jogo infantil das pedrinhas que atiramos ao ar, quer dizer, eu joguei a esse jogo quando era pequenita: vai ao ar, vai novamente ao ar, e será de quem a apanhar. E quem a apanha deverá lançá-la novamente ao ar, e assim sucessivamente, para que precisamente possa passar um pouco de ar entre nós, um ar que é também, ou sobretudo, aquele de que fala Emmanuel Levinas, invisível – “oculto à percepção, a não ser na carícia do vento ou na ameaça da tempestade”, mas penetrável até às entranhas e respirável…

Sabem o que vos digo? Vou fazer uma aposta…vou rematar com a moral de “Una fábula”, e para isso chamo Miguel de Unamuno, em Solidão: “E já te disse que para que essa humanidade solidifique e se fragúe, é necessário primeiro que nos rompam a todos as carapaças, ou no-las adelgacem em finíssimas membranas, e que os nossos vastos conteúdos espirituais se vertam pelas fendas da carapaça rota ou gotejem pela adelgaçada membrana, e se misturem e se confundam uns com os outros. E então, ao se fundirem as ideias dos tolos com a dos sábios e os afectos dos malvados com o dos virtuosos, e os sentimentos de todos, acredita que surgirá algo grandioso e puro. […] E esse sentimento de sentir-se isolado e sozinho no mundo pode chegar a produzir terríveis estragos na alma e até levá-la à beira da loucura.”

Moral da história: El Greco juntou ao rapaz o macaco e o homem para que pudessem, aquele, o segundo e o terceiro, à vez e simultaneamente, criar a humanidade, a qual corresponde à luz que também os convoca.

Imagem de entrada: Una fábula de EL GRECO © Museo Nacional del Prado

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