Afirma-se que a Europa deu novos mundos ao mundo, nomeadamente a partir da Saga Marítima, quando a volta total à Terra se fez em, apenas, 100 anos. E um abraço: quantos anos permite que se percorram e qual a distância transposta?
Em Autografia, um filme com a assinatura de Miguel Gonçalves Mendes, e do qual resultaria o livro correspondente, onde se faz uma sensível aproximação a Cesariny, poeta-pintor nerválgico – sic (mais poeta durante a vida, mais também pintor depois), o ícone do surrealismo, mesmo, dirá que “dar a volta ao mundo” em mar alto, para os marinheiros, significa a rotação completa de um barco sobre si mesmo: “Dei a volta ao mundo, porque o mundo sou eu”. Marina Abramovic, pelo seu lado e em testemunho público no ano de 2015, explicava que se desenvolviam esforços no sentido de criar um Instituto dedicado à performance que insistisse na imaterialidade, no gesto, na singularidade, proporcionando a quem a ele se dirigisse uma experiência de imersão interior, depois essencial para que fossem criadas as condições da atenção que urge não perder de vista. Desde 21 de Agosto de 1415, todavia, data da conquista de Ceuta por Portugal, que se prometia não haver em breve nem mais uma ilha por cartografar em toda a Terra: e assim contraiu-se irreversivelmente a dimensão do desconhecido.
Hannah Arendt poderá então afirmar que “os homens” modernos não foram devolvidos ao mundo, mas antes enconchados dentro de si próprios; que se tenham depois visto a braços com a estranheza desse interior em que mar-inavam julgo que fica bem patente na forma como a Antropologia entenderá, progressiva e historicamente, a diferença cultural. Nestes termos, quando se aponta a dedo, no presente, a incapacidade de alguém manter-se serenamente contemplativo/a, talvez fosse importante fazer como Peter Sloterdijk em Palácio de Cristal: distender o olhar para lá do imediato, não se contentar com porções racionadas de realidade e tentar construir uma grande narrativa. Não sendo este o lugar para ensejo tamanho, no entanto, cabe-nos também, penso, dar a beber a “verdade” seja em que circunstâncias for; e a verdade é que desde 21 de Agosto de 1415 que andamos a liquidificar a Terra, a vaporizar o ar em fase posterior, até à decomposição da paisagem em migalhas tão esboroadas que de pouco apaziguam a fome de alguém. Mas é este o tempo que nos coube viver, e é a ele que devemos salvar.
Aqui faz entrada a ARTE, acutilante. Cesariny com a sua volta ao mundo; Marina Abramovic com a sua intensidade do frente a frente; Klimt com o seu “O Abraço”… A arte é isto, sim: religa o que outras circunstâncias dispersam e sitiam, coloca-nos perante uma atmosfera, atinge-nos totalmente em pontos corporais de difícil elucidação, aloja-se em cavidades interiores, impregna … A arte não é fatia da realidade, exemplificativa de uma média aproximada e ilustrativa, a arte não é o igual, não é o mesmo. No entanto, a arte também não é tão solitária ao ponto de a obra manter uma impenetrabilidade soberana, ou, por outro lado, permanecer tão aberta que a ninguém revelará o seu segredo; existem frestas, frinchas, fendas, gretas, na obra: convites inequívocos para que a penetremos. Existe um espaço na/da obra que solicita percurso/s, pelo que uma obra de arte não é um écran projectivo, não é uma película, mas sim um espaço, sempre, seja qual for a sua consistência matérica, seja qual for a identidade visual com que se apresenta ao mundo. Imaginemos que uma obra de arte é um ponto preto numa folha de papel branca: des-cortiná-la implica fazer dançar o ponto, ou melhor, o ponto automaticamente vem dançar connosco. Um ponto de fuga é um umbigo; e um umbigo é, como se sabe a partir do nosso próprio corpo, um nó górdio.
Volto a questionar: quantos anos permite que se percorram e qual a distância transposta por um “simples” abraço? Se o mundo sou eu, como afirma Cesariny; se no meio da metrópole de Nova Iorque Marina Abramovic permaneceu horas, dias, meses, em silêncio, interpelando pessoa a pessoa; então Klimt, com “O [simples] Abraço”, religa o Ocidente e o Oriente, religa o Feminino e o Masculino, religa o Céu e a Terra, religa Tu e Eu, religa Tudo, na verdade.