Escultura pertencente ao ano de 1944 e ao de 1945, “O Impossível”, de Maria Martins, artista brasileira que amiúde se apresenta à partida como amante de, e não enquanto construtora de mundividências, ajuda-nos francamente a pensar de forma crítica o momento actual.
Pese embora a ciência nos informe de que habitamos no cubículo de um vasto universo, sendo partículas concêntricas de distâncias incomensuráveis, a arte insiste no pequeno, no micrológico, no ínfimo, no derradeiramente singular. Mesmo quando trabalha em série(s), um/a artista (cor)responde a uma espécie de obsessão magna que replica, tacteando, numa exploração ritmada e que chega ao esgotamento por impossibilidade de mostrar, novamente e ainda, um abismo-vertigem que o/a atingiu como uma flecha em chamas. Se a flecha atinge mais a cabeça, mais o coração ou mais o sexo, ou todos a uma só vez e voz, já será outra etapa de reflexão, o que a obra permite depois aclarar. Ora, cabeça, coração e sexo radicam no corpo; por tal, é pelo corpo que o/a artista começa, mesmo que não “represente/expresse/apresente” corpos. E não nos enganemos: é o corpo que encorpa a arte. Não é o sublime reino das ideias desencarnadas, não é a história da arte e seus exemplares, não é o supermercado do presente/realidade. Porquê? Porque as ideias são inspiradas/expiradas, respirando-se e fazendo corpo; porque o/as artistas sabem que dão a mão a antepassados e a vindouros; porque olhar para o lado dos outros, em vez de para dentro de si, gerará repetições vãs e fogos-fátuos.
Não é de descurar que as mulheres não tenham podido nas escolas de belas-artes desenhar à vista modelos nus durante muito/tanto tempo: não se trata apenas de uma questão de decência e interdição vitorianas, mas de excisão criativa, de estratégia socialmente organizada no sentido de que não se apoderassem do corpo e, consequência conexa, não extrapolassem a partir dele as respectivas mundividências. Quando se acusam, a dado momento histórico, mulheres de pintarem “flores e anjos” em modo mole, dever-se-ia ter bem presente que nem sempre se pode fazer o que se quer, mas sobretudo o que se pode, não é? Mas eis que o século XX irrompe como uma estaca no peito feminino, quase como quem quer matar o fantasmático Vampiro da História, e faz com que inúmeras artistas tenham necessidade e apelo em mostrar o seu corpo, expondo-o bastas vezes de forma violenta.
Acontece que o corpo feminino não é uma arma em si, ou seja, não o é na sua especificidade efectiva; o corpo feminino é, mesmo, um mistério, um segredo, um dilema. Assim, uma considerável parte do excesso de exposição do corpo-próprio pelas artistas (Marina Abramovic não incluída) tem contribuído para alastrar a chaga e não para fechar a ferida; acresce o facto de globalmente andar quase tudo bastante desconfiado em relação ao conceito de véu, como se a metáfora da transparência laboratorial exigisse uma global confissão a (olho) nu. Não é por acaso que alguns homens artistas recusaram ser retratados artisticamente por uma mulher: porque sabiam exactamente que o “olhar” capta, penetra, excisa e radiografa a partir da pele, esta sendo limite imprescindível, o espírito. Uma concepção da arte que não tenha em conta o poder e impacto da origem que lhe é subjacente, isto é, a captação e distribuição de micro-espíritos, errará, duplamente.
Neste entorno, “O Impossível”, de Maria Martins, surge como uma transposição imagética fulminante: a apresentação esculpida de uma tensão dual inescapável e passível de actualizar-se até ao fim dos tempos. Como afirma Gilles Deleuze, o pensamento é como uma rajada de vento que nos atinge pelas costas; já a arte é uma flecha em chamas, repito; a ciência, por sua vez, assume a imagem de um rio. Nós não olhamos a realidade de frente, por trás de uma linha, como se fossemos recortes!