Paulo Carneiro na Berlinale / entrevista

“As pessoas têm de se convencer que é preciso muita dedicação e não se pode desistir quando as coisas não são fáceis”

O realizador e produtor Paulo Carneiro, cuja longa-metragem “Bostofrio, où le ciel rejoint la terre” tem sido um sucesso nacional e internacional, é um dos novos rostos do cinema português a ter em atenção.  

A Mutante teve o prazer de entrevistar o cineasta, por ocasião do Festival de Cinema de Berlim, que com uma honestidade revigorante nos falou do seu percurso improvável no mundo do cinema, do seu sucesso, e da sua determinação e ética de trabalho. 

Paulo, já participaste na Berlinale anteriormente, incluindo como assistente de realização de João Viana, em “Madness” e “”Our Madness”. Como é que te sentes por teres sido selecionado como um dos “Berlinale Talents” 2020 e que balanço fazes da tua experiência?

Antes de mais, não estava muito familiarizado com o Berlinale Talents. No entanto, foi uma experiência bastante positiva, não só porque estou no meio do processo de montagem de um filme, pelo que pensei que faria sentido enviar a minha candidatura, mas também pelos vários contactos que se fazem no meio. Estes são contactos interessantes que se podem transformar em possibilidades de trabalho, de colaborações futuras, pelo que foi uma experiência muito enriquecedora. 

A 70ª edição do festival tem menos filmes, mas mais diversidade. Achas que há variedade suficiente no cinema português?

Penso que há bastante variedade, o que é uma das características principais do cinema português. Existem realizadores de todo o lado do país e existe uma consciência de trabalho bastante forte, independentemente do financiamento. O cinema português tem uma grande capacidade de se reinventar constantemente e têm aparecido novas vozes, novas formas de ver e de criar filmes a cada ano que passa. Há uma tendência para se dizer que somos fechados em nós mesmos, mas não concordo nada; quando vou a festivais no estrangeiro as pessoas ficam admiradas e dizem que os filmes portugueses são tão interessantes, tão diferentes. Dizem que temos uma nova aproximação ao cinema fascinante, que penso que tem que ver com a liberdade que os realizadores portugueses têm e que deve ser preservada. 

Há uns tempos também se falou na questão dos júris do Instituto do Cinema e do Audiovisual (ICA) terem pessoas ligadas às telecomunicações e televisão, o que acho perigoso por serem pessoas “formatadas” que oferecem e adaptam filmes de acordo com o que o público pretende ou possa gostar e, esse público, embora não tenha culpa, não é um público educado. Quando eu digo “educado” digo no sentido do cinema português.

Outro ponto importante a referir é o do plano nacional de cinema. Tal como o plano nacional de leitura, considero ser importante ter um plano nacional de cinema como parte da educação nas escolas, de forma a que as crianças se habituem desde a primária a ver filmes portugueses. Se começarem desde cedo a ter contacto com o cinema português, há uma aproximação e sensibilização à cultura e à própria língua que permite uma outra abertura ao cinema nacional. 

A tua primeira longa-metragem, “Bostofrio, où le ciel rejoint la terre”, estreou no IndieLisboa em 2018 ganhou diversos prémios nacionais e internacionais. Que cena do filme é que te orgulhas mais?

Não me orgulho de nenhuma cena em particular, já que o filme só funciona no seu conjunto. Posso dizer que fiz o filme que queria fazer, sem qualquer financiamento do ICA, e que vem de uma experiência muito pessoal. 

É difícil apontar uma cena em específico porque é muita dedicação, é muito tempo de trabalho sobre um objeto, que não me permite referir uma cena que seja mais importante que outra.

Em “Bostofrio”, há uma sensação de isolamento que nos faz pensar no que pode ser considerado como a desvantagem geográfica de Portugal. Como cineasta, já equacionaste mudares-te para o estrangeiro?

Já equacionei, sim. No entanto, é complicado pensar em filmar fora de Portugal, que é onde eu nasci, é aqui onde eu estou comprometido nos meus projetos e é aqui onde eu tenho voz e alguma coisa para dizer. Espero manter-me no meu país mas só o futuro o dirá.  

Paulo, trabalhas assiduamente com João Viana. De que forma é que se influenciam e inspiram um ao outro?

Eu comecei a trabalhar como assistente do João mas acho que o nosso trabalho é bastante diferente entre si. Eu trabalho sobretudo no campo do documentário, o João trabalha bastante mais no campo da ficção, sobre um realismo mágico, e os seus filmes têm bastante pouco diálogo, enquanto que eu trabalho muito com diálogo. Nós estamos nos antípodas um do outro, mas claro que o espectador poderá interpretar esta ligação de maneira diferente.

Que características é que consideras serem fundamentais para um jovem realizador vingar na indústria?

Trabalho, trabalho e mais trabalho. E este trabalho é feito todos os dias. Esta ideia de “ ah, fazer filmes é só ter ideias” é falsa; é necessário trabalhar e isto significa ler livros, ver filmes, ouvir e deixar-se influenciar pelo dia-a-dia, pela vida. As pessoas têm de se convencer que é preciso muita dedicação e não se pode desistir quando as coisas não são fáceis. Se não fosse determinado e dedicado ao meu trabalho, já tinha desistido há muito tempo, porque há seis anos que concorro aos concursos de financiamento do ICA e nunca ganhei. No entanto, para mim isto não é um pretexto para desistir. É preciso continuar a lutar e ter muito foco; focar-se no que é essencial e no percurso que se deseja atingir, independentemente do que te dizem. Por exemplo, não estudei cinema e tive várias pessoas, incluindo professores, que me disseram que nunca iria fazer filmes, mas acredito que através do trabalho, é possível chegar-se a algum lado.

Ou seja, não é fácil; por detrás do “glamour” está um grande sacrifício e ética no trabalho. 

Como é que lidas com o fracasso, quer de ideias, quer de colaborações por exemplo?

Sou bastante prático nesse sentido e lido relativamente bem com o fracasso. Até hoje, ainda não senti uma falta de ideias, de histórias.

Em relação a colaborações, é mais complicado quando são projetos meus. Um realizador é uma pessoa que trabalha muito sozinha e por vezes a produção à volta desvaloriza o processo temporal que o realizador precisa porque não tem uma ligação forte ao projeto. Isto torna-se um pouco complicado de lidar. 

É necessário um foco muito grande para não sermos pessimistas e para estarmos motivados para trabalhar todos os dias. 

Em relação a novos filmes e projetos, podes-nos dizer em que é que estás a trabalhar actualmente?

Estou a trabalhar na montagem de um filme, estou a escrever um outro e estou a tentar obter financiamento para um projeto experimental e mais ligado às artes plásticas. Neste momento, o “Bostofrio” continua com uma série de projeções agendadas de norte a sul do país, nas quais eu estarei presente para falar com o público. 

Para terminar, se pudesses escolher um livro para adaptares para o cinema, que livro escolherias e porquê?

Há um livro que eu gosto imenso e com o qual tenho uma ligação muito forte, que é o “Novelas do Minho” de Camilo Castelo Branco. É um livro riquíssimo, que já li várias vezes, e com uma diversidade gigante que penso que seria interessante em adaptar a documentário.

+ Paulo Carneiro

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