“O Pequeno Mundo”: o Mesmo / Jorge Molder

2000, ano em que se começava a verter um Milénio, foi aquele que Jorge Molder escolheu (ou será que foi o Ano que o escolheu a ele?) para apresentar “O Pequeno Mundo”, precisamente, ao Outro Mundo.

“O Pequeno Mundo”, série de 24 fotografias a preto e branco impressas com sais de prata em papel, com as dimensões de 35 x 35 cm, e retiradas no último andar de um edifício pombalino localizado na baixa de Lisboa, onde havia funcionado um negócio do pai do artista, permanece no Museu Calouste Gulbenkian e faz parte da significativa colecção de arte Moderno-Contemporânea que aí se alberga. Sendo uma série inaugural, a sua vida expositiva viria a fazer corpo com outras três obras de Jorge Molder, enunciando o que pode considerar-se uma constelação: “Linha do Tempo”, “Não tem que me contar seja o que for” e “Interpretação dos Sonhos”. 

Sendo encenado no interior de uma casa, “O Pequeno Mundo” poderia eventualmente sugerir a providência de uma segurança ontológica; todavia, não é isso que se verifica. Se pesquisarem na plataforma digital do Museu Calouste Gulbenkian, seleccionando a Coleção Moderna, e percorrerem as 24 fotografias, creio que poderão aperceber-se de que interior, desenho, passagem, penumbra, vidro e duplo, as 6, digamos, intensidades que caracterizam “O Pequeno Mundo”, nos colocam perante intransponibilidades relativamente óbvias, ou seja, dilemas. 

Veja-se. Interior: o espaço é totalmente aberto e com fugas labirínticas, sem ocasiões para recolhimento. Desenho: a figura masculina é vista de diversos ângulos ou pontos de vista, o que podia apresentar-se como perspectivismo fundamental, mas, afinal, o que vemos é um panóptico que acentua o escancaro antes detectado, provando a ausência de latência. Passagem: nunca nada se transpõe porque a figura masculina hesita perante os limiares, sejam estes as portas, sejam os olhares, não se efectivando, então, as possibilidades. Penumbra: apercebemo-nos de que a luz não ilumina, mas permanece antes quase insone numa autonomia fechada, e a sombra, na relação com a luz, é rígida e impenetrável. Vidro: pese embora a sua qualidade de transparência, aqui torna a figura masculina espectral e prova-nos a intransponibilidade, pois através da parede de vidro vê-se, mas não se toca. Duplo: aqui, o duplo, manifestado através do desdobramento de objecto, sujeito, interior/casa, mostra-nos uma replicação exacta do mesmo.

Apontem-se, então, os dilemas: interior – exposição; desenho – vigilância; passagem – impasse; penumbra – fechamento; vidro – impossibilidade; duplo – relativismo. Donde, extrapolando, podemos concluir que a Figura, masculina, também pode surgir-nos como forma visual muito concreta do Mesmo – universal masculino, neutro, soberano, autónomo, encarcerado. O Mesmo, que se associa, portanto, ao Masculino em termos históricos, padece de uma exposição total, pois a Casa não salvaguarda a sua intimidade; sobre ele impõe-se a vigilância permanente, provando uma indistinção entre espaço público e espaço privado; demonstra uma incapacidade para estabelecer e efectivar ligações, o que significa que não separa, mas que também não une; permanece fechado sobre si, impenetrável, couraçado, sem frestas que conduzam ao mistério; é na sua essencialidade uma forma intocável e, por outro lado, sem ocasião para tocar; aparece sem acordo resolutivo, já que a sua capacidade para encetar escolhas permanece tolhida. 

Recuperando agora a constelação expositiva em que “O Pequeno Mundo” se inscreveu, fazendo coro com “Linha do Tempo”, “Não tem que me contar seja o que for” e “Interpretação dos Sonhos”, creio que podemos chegar a uma proposta-desafio que Jorge Molder nos coloca de forma muito evidente. “O Pequeno Mundo”, aparentando aqui ser o da Casa, porque interior, mas manifestando, pelo que foi dito, o mal-estar advindo da indistinção entre espaço privado e espaço público, encastra-se num horizonte de problematização do Tempo, insiste numa actual incapacidade demonstrada, tanto individual como colectivamente, para contar uma história, ao se manter a impotência quanto à narratividade, e instiga a que nos enfrentemos através da interpretação dos sonhos colectivos. 

Pela minha parte, considero a proposta-desafio de Jorge Molder muito inteligente e julgo que devia implicar-nos, um/a a um/a, num encontro que tanto o Tempo, como a História, nos vêm pedindo, mas que agora, em 2020, creio ter-se precipitado com evidência.

Imagem de entrada: da série O Pequeno Mundo. 2000, Papel. Fotografia impressa com sais de prata Inv. FP518 / Jorge Molder © Gulbenkian

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