Referência no panorama do jazz europeu, Carlos Bica, que reside atualmente em Berlim, é considerado como um dos melhores músicos nacionais.
Para além do conhecido trio “Azul”, composto por Frank Möbus (guitarrista) e Jim Black (baterista), com quem editou o seu álbum de estreia “Azul” (1996) e com quem ganhou o título de melhor “Álbum de Jazz do Ano”, o contrabaixista e compositor tem liderado diversos projetos musicais de sucesso ao longo da sua carreira de mais de 30 anos.
A Mutante esteve à conversa com Carlos Bica, um músico sem medo de quebrar fronteiras, a propósito dos momentos mais marcantes da sua carreira, do movimento de jazz atual e dos seus próximos projetos.
O Carlos vem de uma família de não-músicos. Como é que surgiu o seu interesse pelo jazz e pelo contrabaixo em específico?
O interesse pelo jazz surgiu como fruto de uma paixão pela música que nasceu na minha adolescência com as bandas de garagem. O contrabaixo apareceu mais tarde por mero acaso, mas a vida é cheia desses meros acasos.
Da música erudita contemporânea à folk, ao rock, ao jazz e às músicas improvisadas, o Carlos tem uma sonoridade muito própria. O que o inspira a criar?
A Vida é por si própria a grande fonte de inspiração. Mas para ser mais pragmático passo a citar Pablo Picasso: “Que a inspiração chegue não depende de mim. A única coisa que posso fazer é garantir que ela me encontre trabalhando“.
O seu álbum mais recente, “I Am the Escaped One” (2019), para além do saxofonista Daniel Erdmann, junta o DJ Illvibe, o mesmo que ouvimos como convidado no álbum “Believer”, dos Azul. De que forma é que a eletrónica complementa o jazz, sem correr o risco de se sobrepor?
Eu não considero o DJ Illvibe um músico de eletrónica; os seus instrumentos são os discos em vinyl. As vozes, os sons e ruídos que ele descobre nos seus discos são a base da sua criação e experimentalismo musical.
Mas respondendo diretamente à pergunta, numa primeira audição os sons de instrumentos eletrónicos poderão parecer um corpo estranho e dominante pelo simples facto de não estarmos habituados a ouvi-los. No caso deste trio em concreto, o DJ está a ocupar o lugar que tradicionalmente poderia ser ocupado por um piano ou uma guitarra, o que pode de início suscitar alguma estranheza. Mas, como habitualmente se diz, “primeiro estranha-se e depois entranha-se“; assim aconteceu comigo.
Trabalhou não só com os maiores nomes da música portuguesa, como os fadistas Carlos do Carmo e Camané, mas também com artistas de renome internacional, incluindo o pianista Alexander von Schlippenbach. Com quem é que o Carlos gostaria de colaborar no futuro e que ainda não teve oportunidade?
Poderia citar o nome de vários músicos por quem tenho uma grande admiração, mas isso não significa necessariamente que gostasse de colaborar com eles. Só faz sentido ter uma grande vontade de trabalhar com determinado músico se este se enquadrar dentro dos meus planos musicais. Os instrumentistas poderão facilmente ser substituídos, mas os músicos quando conscientemente selecionados, são peças imprescindíveis. A ambição de qualquer músico deve ser a de conseguir um som de grupo e, para isso, tudo começa com um bom “casting“.
O Carlos é considerado pela crítica como um dos melhores músicos nacionais de Jazz de sempre e, ao todo, soma 20 álbuns gravados. Até agora, qual é que foi o momento mais marcante na sua carreira?
Os momentos mais marcantes na minha terão sido provavelmente aqueles que menos louros me trouxeram. O palco sempre foi para mim um lugar como que sagrado. Nunca esquecerei as primeiras vezes que pisei um palco. Recordo-me da primeira vez que toquei em público na minha primeira audição na Academia de Amadores de Música em que só “acordei“ com as palmas entusiastas do público após ter acabado de tocar a peça. Também os meus primeiros concertos de jazz no clube “Velha Goa“ em Lisboa em 1981, foram vividos com uma enorme intensidade, pela primeira vez na minha vida eu estava a apresentar em público um trabalho com um cunho pessoal em que sentia que a minha criatividade estava presente.
Como todas as formas de arte, o jazz está em constante evolução e vem-se tornando cada vez mais diversificado. Como é que a cena mudou nos últimos 25 anos e que novas tendências têm surgido no panorama europeu?
Não me parece que nos últimos 25 anos tenham nascido novas correntes musicais dentro do género musical jazz. Surgiram no entanto novos músicos com uma enorme criatividade e senhores de uma entidade muito pessoal. O jazz é nos dias de hoje em primeiro lugar uma música viva com uma enorme abertura para o ainda desconhecido disposto a abraçar as mais diversas influências. Se alguém disser nos dias de hoje que gosta ou não gosta de jazz, a que música é que ele se refere? É impossível saber.
Como um dos mais importantes centros culturais do mundo, que papel é que Berlim tem vindo a desempenhar no movimento do jazz contemporâneo?
Desde os anos após a queda do muro, que Berlim tem vindo a acolher músicos chegados dos mais diversos cantos do mundo. Como conta a história, enquanto uma cidade cosmopolita, como é exemplo Berlim, não se tornar economicamente insustentável para um artista, esta funcionará como uma oficina de arte que pode dar muitos e bons frutos, como tem vindo a constatar-se.
Berlim recebe cerca de 400 milhões anuais do Estado para investir em cultura. Considera que há apoios financeiros suficientes para artistas portugueses?
A resposta é um claro não. A Alemanha, e os seus governantes, está consciente da enorme importância da cultura e, nesse sentido, Portugal ainda tem muito a aprender.
Em que projetos é que o Carlos está a trabalhar atualmente?
Neste momento, estou a trabalhar num projecto com o título “Playing with Beethoven“, uma encomenda da Câmara Municipal de Loulé, que deveria ser apresentado em finais de Maio do corrente ano, mas cuja apresentação foi adiada para o início de 2021 devido à atual crise. Um contrabaixo, um saxofone, um par de gira-discos e um piano. Será à luz desta invulgar formação que o legado de Beethoven na passagem dos 250 anos do seu nascimento em 2021 será reinventado. Para este desafio conto com os músicos Daniel Erdmann, DJ Illvibe e João Paulo Esteves da Silva.
E para terminar, se pudesse recomendar cinco “must have” álbuns de jazz, quais é que seriam?
Na música é impossível dizer “este é o melhor“, muitos outros álbuns poderiam estar no lugar destes aqui mencionados. Estes álbuns são alguns clássicos da história do jazz, pelos quais eu tenho um carinho especial.
- Ahmad Jamal “Live at the Pershing & The Spotlight Club“
- Bill Evans “You must believe in Spring“
- Miles Davis “A Kind of Blue“
- John Coltrane “A Love Supreme“
- Keith Jarrett “The Köln Concert“