Nascido em torno de 1984, na cidade de Nova York, o colectivo “Guerrilla Girls” é constituído por artistas feministas cujo essencial objectivo é contrariar o sexismo e o machismo na arte, chamando a atenção para desequilíbrios evidentes.
John Berger, em Modos de Ver, afirmou-o: passe-se os olhos pelas obras da arte severamente inscritas na memória colectiva Ocidental, projecte-se em cada uma das figuras femininas um homem e observe-se a violência que irrompe da alternação de papéis – donde se conclui, com este narrador tal como os define Walter Benjamin, preciosos e raros para a actualidade, que a imagem sempre foi construída para agradar ao ponto de vista masculino. Não é de espantar que a República, cujos fundamentos e formulação contemporânea não só prescindiram das mulheres como as ostracizaram, se faça representar através de uma mulher com os seios descobertos? Não é de espantar que se represente um regime político no alvor através de uma mulher nova e robusta, para se associar um outro em ocaso a uma mulher velha e flácida? Não é de espantar apenas por um motivo: porque o corpo das mulheres sincretiza de forma exemplar várias patologias sociais, quase todas alojadas num umbigo que é ponto de interrogação, bem colocado por Sigmund Freud e remetido aos homens – “de onde vêm os meninos?”
Quando os homens mergulharam no corpo humano, através da anatomia consubstanciada pela autópsia moderna, André Vesálio, ostensivo pai da prática, escolheu como imagem destacada precisamente a de um corpo morto de mulher onde se sondava o ventre; o segredo “de onde vêm os meninos” pode não ter sido descoberto então, em 1543, mas a ciência moderna tinha decididamente nascido. Que em torno de tal corpo morto de mulher se vejam apenas homens, uma vez que a presença de mulheres era tabu, como aliás o iria ser na medicina por tão largo tempo, plasma o pendor corporativo, e másculo, da ciência: porque esses homens irão fazer corpo entre si. Pagam um preço? Claro: o da singularidade, nomeadamente o da sua encarnação. Por tal, não são apenas as mulheres a enfrentar problemas, nomeadamente o de não terem sido inscritas na história Ocidental, bem como o de não participarem do grande espírito universal; mas também os homens, como o vinca Luce Irigaray, enfrentam o grande problema de se terem diluído num “corpo” anónimo, se bem que neste se preserve a identidade do nome e, através dele, o poder.
Em tempos de ocaso do “sujeito”, que se diz ser atravessado por forças, pulsões, estruturas, todas tendentes a obstar à sua escultura pessoal, eis que surgem vozes dissonantes, como a de Alain Touraine, para focar apenas um exemplo, mas de peso: as mulheres, para o pensador, são quem mais bem se encontra em posição de assumir-se enquanto “sujeitos”, precisamente porque o sujeito não é transparente a si, nem ao mundo, mas dilemático, traumático, questionador e opaco. Ora, se nos afastarmos previamente de uma visão atomista, naquele sentido em que o indivíduo é inteiramente separado do social, e que poderia levar-nos a um nominalismo estrito que à partida minaria a capacidade de estabelecer férteis ligações; se obstarmos a categorizações infindáveis e solventes, para nos atermos ao comum que nos une, mas também diferencia; concluiremos, penso, tanto pelo que é o humano, como pelo que é especificamente humano – a diferença sexual. Daqui brotam, depois, as possibilidades de entendimento várias.
As “Guerrilla Girls” mantêm o anonimato quanto às identidades, através do uso de máscaras e pseudónimos de artistas que já não estão entre nós, focando o corpo feminino, afinal, aquele em que se guardaram as mulheres, para melhor insistirem nos problemas e nas encruzilhadas de dilemas que a arte contemporânea reitera, também. É obra. Através de um trabalho lúcido e persistente devolvem-nos uma percepção muito consistente quanto a heranças – a nudez, por exemplo, quanto a estatísticas – o desequilíbrio entre homens e mulheres, quanto a genialidades – a autoridade. Pergunta-se bastas vezes: mas o que querem as mulheres? Parece-me que, pese embora as “danças macabras” (no sentido literalmente medieval, ou seja, associadas à pulsão da morte) da sedução, que dão para todos os lados, claro, as mulheres querem, acima de tudo, uma coisa: respeito. O que, tendo em conta o facto de como o corpo das mulheres sincretiza de forma exemplar várias patologias sociais, repito, nem sempre é óbvio…
Entretanto, e nunca é demais frisá-lo, feminismo não é a adaptação feminina de machismo: este trata-se de um território de poder específico da alçada masculina; aquele, que na génese visou cooptar direitos, tanto políticos, como jurídicos, sociais e económicos, para as mulheres (porque o “machismo”, ou, pelo que foi exposto, a corporação masculina, os mantinha cativos), advoga por um equilíbrio antropológico. Para que tal equilíbrio se calibre será necessário continuar a cooptar direitos, tanto quanto manter a arder a chama da diferença sexual que é, tão somente, o coração exacto da própria diferença.