Pintou-se em torno do ano 1440 no Dormitório do Convento de São Marcos, em Florença, onde Fra Angelico, aliás, primeiro Giovanni de Fiesoli, foi um dos irmãos dedicados à incansável gravação de imagens.
Sempre tive um carinho incomensurável, e por tal também dificilmente explicável, por Fra Angelico encarnado na sua pintura; posso identificar a delicadeza dos gestos, a metafísica da cor, o despojamento dos lugares, mas não é suficiente para dar conta da forma como me atinge.Posso, então, concluir que Fra Angelico me toca profundamente e me sensibiliza: e essa é uma parte, não assimilável. Por outro lado, é legítimo que procure, não propriamente as razões responsáveis pelo encantamento, mas mostrar-vos, no máximo esplendor, a particularidade de uma obra aparentemente tão longínqua. E digo longínqua porque a Modernidade impôs uma relação com o tempo de contínua superação, o que alastrou à arte, e que o Modernismo, manifestação situada no seu seio, veio contrair não sem laivos de determinada angústia. Assim, parece que nos transformou em “salta-pocinhas”: constantemente diferido/as e demasiadas vezes sem “tempo” para uma detenção exacta nas coisas.
Nesta perspectiva, de contínua superação, torna-se desconcertante o confronto com diversas leituras e interpretações que se atêm a obras de arte, e ao passado de uma forma generalizada: como se fossemos sempre a correr; e naquele tempo ainda não se sabia de, ou ainda não se tinha alcançado isto, ou a descoberta de x estava prestes a desenhar-se, ou y desconhecia z. E as coisas, mesmo? Quando será a idade de verdadeiramente nos atermos às coisas? Como colectivo, claro; já que existem casos significativos de visões diferentes. Porque o/s tempo/s não são caixas fechadas, lacradas por linhas estritas e operantes num exíguo espaço, esta posição sobranceira da Modernidade em relação ao passado, que pueriliza e julga no tribunal do conhecimento essencialmente tecnocientífico, é muito injusta, e não nos deixa grande futuro. E aqui a arte pode, e deve, operar.
Georges Didi-Huberman, com quem compartilho a admiração inabalável por Fra Angelico, diz-nos também o seguinte em Diante do Tempo. História da Arte e Anacronismo das Imagens: “Diante de uma imagem – por muito antiga que seja –, o presente nunca cessa de se reconfigurar, mesmo que o desapossamento do olhar tenha completamente cedido o lugar ao hábito enfadado do «especialista». Diante de uma imagem – por muito recente ou contemporânea que seja –, também o passado nunca cessa de se reconfigurar, já que esta imagem só se torna pensável numa construção da memória, senão mesmo do assombro. Diante de uma imagem, afinal, temos de reconhecer humildemente o seguinte: é provável que sobreviva à nossa existência, diante dela somos nós o elemento frágil, o elemento passageiro, e diante de nós é ela o elemento do futuro, o elemento da duração. A imagem tem frequentemente mais memória e mais futuro do que o ente que a olha.”
Se o futuro da obra de arte assenta nas gerações vindouras, como parece crer Maurice Merleau-Ponty, que afirma terem as obras de arte toda a vida à sua frente, ou se vai para outro lado, como o quer Jean Genet, que afirma que as obras de arte são uma oferenda ao inúmero povo dos mortos, não saberei cabalmente, todavia, algo há que daqui se pode concluir: a Modernidade deixou-nos o problema muito sério da finitude, ou melhor, do “embaraço” da finitude. Assim, em diferentes escalas, da pessoal e individual à estatal, a Modernidade fez crer que tudo existe na contracção temporal de um actual sempre igual, porque se trata de um operador intrínseco ao próprio tempo, que o molda enquanto vazio essencial. E, no entanto, o actual sempre igual traduz uma incapacidade assinalável de lidar com a finitude. Sou fervorosa defensora da grande alegria enxertada na vida, e não se trata de melancolia o que aqui traduzo como “finitude”, antes sim consciência do que Georges Didi-Huberman tão claramente expõe na passagem que transcrevi anteriormente. A nossa fragilidade – fragilidade e vulnerabilidade constitutivas, que não devem mascarar-se, mas antes tornar-se poderoso elixir comum –, pode ser contrabalançada pela fé que reservemos às imagens, e às palavras acrescento, o que exige ir às coisas e habitar o tempo, num real abraço do tempo.
Fra Angelico demonstra essa fé nas imagens, e não porque se atenha a temas religiosos, o que, aliás, está perfeitamente de acordo com a sua vida: não foi ele um frade dominicano? A sua, e nossa, “Anunciação” de cerca de 1440, que aqui fica como pórtico para o tempo, não apenas da obra de arte, mas também da nossa vida, pode muito bem ser olhada como uma alegoria bela.