A escultura como cegueira? Alberto Carneiro

“Uma Floresta para os Teus Sonhos”, de Alberto Carneiro, artista-escultor que nos deixou em 2017, pode muito bem apresentar-se como um campo expandido de experiência; diferente de cenário, muito diferente, antes envolvimento. 

“Uma Floresta para os Teus Sonhos” trata-se de uma instalação e, na concepção de Alberto Carneiro, o que se deixa fixado no texto que no Museu Calouste Gulbenkian acompanha esta obra de arte, “uma escultura natural ou um envolvimento” que vem do ano de 1970, quando o escultor regressa de Londres, onde, depois de ter aprendido a arte de santeiro e seguido o ensino artístico em Portugal, frequentaria a pós-graduação na Saint Martin’s School (1968-70) sob a direcção de Anthony Caro e Phillip King. Alberto Carneiro defendia que uma escultura é, não apenas contemplável, mas igualmente atravessável e tocável, desafiando os sentidos de forma integral.

Durante muito tempo, e ainda sem conhecer exactamente o trabalho, obra e perspectiva de Alberto Carneiro, preferi a escultura; a relação que se estabelecia entre mim e ela, escultura, era total, apenas sem a integração pela deglutição: o toque era essencial, usualmente de olhos bem fechados, apreendendo uma sensualidade que não se circunscrevia à matéria, embora por ela fosse potenciada, mas que mais se oferecia enquanto espaço imaginativo sensorial. 

Nesses anos, que coincidiram com a minha aprendizagem formal associada à História da Arte, não se discutia propriamente entre nós, no curso, que me lembre, a opticalidade compulsiva do Ocidente, nem tinha tido acesso, ainda, às virtualidades desenvolvidas em torno dos sistemas que privilegiam o háptico por forma a equilibrar uma distância, ou uma cisão, entre vidente e visto, incrementando, assim, uma outra proximidade e a experiência integrativa. Apenas mais tarde compreendi que a opticalidade compulsiva estaria relacionada, em termos Modernos, com a postura cartesiana e que um dos desígnios mais fervorosos da atitude filosófica contemporânea será fugir à dualidade implementada por René Descartes. De tal dualidade resultaram inúmeras consequências, nomeadamente, a frieza, que considero similar a uma apatia, que deverá presidir a um objecto de estudo. Creio que, de forma ostensiva, já todo/as ouvimos, relativamente à vontade de estudar uma determinada questão ou problemática, o conselho avisado para que não nos envolvamos, demasiado. Mesmo sem ter estado no início na posse desta tensão, que não é apenas conceptual, a minha experiência com as obras de arte, nesses anos de aprendizagem, era comandada pela paixão, e continua a ser.

A intensidade parece-me essencial para conseguir aceder aos círculos mágicos que todas as obras de arte criam. É curioso, por outro lado, pensar que durante tantos anos tacteava as esculturas exactamente como o fazia com os textos, sobretudo os filosóficos: deparava-me com um determinado tipo de cegueira, aquela que impede de ver, ver enquanto pressuposto da compreensão. A dada altura da minha vida, a cegueira dissipar-se-ia de forma relativa, a escultura deixou de ocupar o lugar primordial, e a pintura irrompeu: a escultura está para o tacto, como a pintura está para a visão. Também os textos se tornaram mais perceptíveis, embora preserve aquela hipótese muito bem colocada por José Bragança de Miranda, ou seja, de que podemos ler mal, podemos não coincidir totalmente, ou com uma intencionalidade, ou com uma mensagem estritamente transparente. 

Neste entorno, acabei por compreender a dado momento que a expansão das manifestações artísticas, em que se denota um envolvimento espacial relativo a quem frui a obra de arte, seja na instalação, seja na performance, por exemplo, que me parecem condensar os essenciais tropos contemporâneos, resulta da desagregação do espaço interior do quadro, então, daquilo que tanto/as consideram a morte da pintura. Concomitantemente, e como Isabel Sabino oportunamente regista, irrompe o olhar pictórico: o que são as instalações e as performances? Quadros-vivos.

Deste modo, poderíamos ver a arte agora, aquilo a que se chama a arte contemporânea, como uma espécie de pintura assistida. Predominando na pintura a visão, portanto, e como Marcel Duchamp defendeu sem concessões, o circuito é depois completado por quem frui, pelo/a espectador/a. Aliás, Marcel Duchamp, que espetou o espinho do ready-made na arte, seria pessoalmente intransigente, e consequente, com essa defesa do/a fruidor/a quando nos deixou Étant Donnés, a obra que apenas foi exposta após a sua morte e na qual trabalhou anos a fio em segredo, quando toda a gente julgava que jogava xadrez e embalava miniaturas. Acontece que a instalação e a performance, todavia, herdam da escultura uma espacialidade que concorda com a chamada terceira dimensão: não se diz que a pintura caminhou no sentido de conquistar a bidimensionalidade constitutiva, e que durante séculos se ludibriou através de uma ilusão que se apresentou civilizacionalmente como um logro que a fotografia viria demonstrar? Mas: nem a pintura é exactamente bidimensional, nem a escultura é essencialmente tridimensional, o que acaba por colocar desafios contemporâneos paradoxais, sem dúvida, mas também, como desafios que são, muito estimulantes.

E que desafios são esses? Primeiro: os quadros-vivos contemporâneos implicam uma espécie de responsabilidade, singular, tanto quanto colectiva. Segundo: o óptico e o háptico não se excluem, mas exigem cooperação mútua. Terceiro: o/a artista, em face da desagregação dos limites da obra, que decorre da desagregação do espaço interior do quadro, não poderá servir de consolo. Preservados estes desafios, então, podemos perder-nos n’ “Uma Floresta para os Teus Sonhos”, de Alberto Carneiro, e encontrar-nos mais à frente, com grande probabilidade, diferentes.

© Imagem de entrada: © “Uma floresta para os teus sonhos” de Alberto Carneiro / Troncos de madeira de pinho tratados, 1970

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