Um quarto que seja seu: Vincent van Gogh

A reivindicação é de Virginia Woolf – “um quarto que seja seu” e o quadro é de Vincent van Gogh – “Quarto em Arles”, local onde este pintor permaneceu por um tempo considerável, o suficiente para nos dar uma percepção exacta do seu desregramento.

Creio que se pode ter conhecimento do fim trágico de Virginia Woolf, a caminhar águas adentro com umas pedras nos bolsos, depois de, entre outras coisas, lhe ser interditada a entrada numa biblioteca, cujo acesso era apenas permitido a homens; a tal interdição reagiu considerando que sempre seria melhor ficar fechada do lado de fora do que do lado de dentro. Virginia Woolf morreu também por mim, para que eu pudesse escrever hoje, agora: e essa é uma realidade que tenho sempre presente. “Um quarto que seja seu” trata-se da fixação posterior através da escrita de duas intervenções públicas em Cambridge, e reflecte, essencialmente, sobre as condições materiais que proporcionam, ou não, a necessária independência de uma mulher para que exercite a sua pena no papel. 

Vincent van Gogh deixou-nos, por sua vez, inúmeros quadros pintados, uma boa parte deles num contraído espaço temporal, que equivaleu aos últimos anos de vida. E se Vincent van Gogh cortou a própria orelha porque a sua cabeça era um búzio que lhe proporcionava ouvir, compulsivamente, o que não suportava? Vincent van Gogh teve o seu quarto, ainda que por pouco tempo e substancialmente ajudado pelo irmão, Theo van Gogh, o mesmo que caiu em tristeza profunda quando Vincent morreu. Foi porque ele pintou que eu escrevo hoje, agora: e essa é uma realidade que tenho sempre presente. 

Questiona Walter Benjamin: “Não passa por nós um sopro daquele ar que envolveu os que vieram antes de nós?” Claro, e digo claro com a maior certeza, sem hesitar, mesmo correndo o risco de me considerarem demasiado convicta, com certezas absolutas, que num tempo actual em que macro-convicções induzidas soporificamente apontam sempre para o desgaste do passado, normalmente congelado, e para a promessa assertiva de um futuro constantemente penhorado porque o presente se atém à juvenil passagem desbotada de gerações sempre com a mesma idade, claro, e digo claro com a maior certeza, que olhar as pessoas antepassadas que nos inspiram, instigam, respirar o mesmo sopro daquele ar que os envolveu, é estranho, entendo. Mas se Virginia Woolf reclamava um quarto e se Vincent van Gogh pintou como se não existisse tempo, então, e sendo minha e meu antepassado/a, e vivendo em mim, e tendo um quarto e querendo escrever como se não existisse tempo, não nos cabe, a nós, também não hesitar? 

Porque, reparem, a que interessa que hesitemos? Ao capital. Neste espaço global em que tudo se propaga sob a capa de uma liberdade individual engendrada no cadinho de um livre-arbítrio bem assistido por forças que dão as mãos de um lado ao outro do planeta Terra, se hesitarmos, outros há que, mesmo disfarçados de dúvidas, não hesitarão nunca. Sempre que alguém de bem se demite de passar a mensagem, de passar a corrente, de dar a mão ao/à semelhante que se cruza consigo, mais à frente alguém vai, mesmo disfarçado de dúvidas, arrebatá-lo/a. Os destinos de Virginia Woolf e de Vincent van Gogh foram trágicos, mas a sua mensagem é poderosa e a corrente continua a fluir, bem como as mãos permanecem para quem as quiser tocar. 

Reparem que as directrizes relativas ao exercício de quase todos os trabalhos acentuam que o desempenho deve pautar-se pelo congelamento de juízos de valor: seja quem está na recepção de um museu, seja na condução de uma visita guiada, seja um/a professor/a, seja quem for; ao/à artista parecem ainda consentir-se picos de “delírio”, pelo que Hannah Arendt, por exemplo, considera que são os únicos indivíduos que escaparam à diluição provocada pela sociedade de massas. Porquê este congelamento de juízos de valor? Para evitar o trabalho do desejo, para evitar o contágio. Num momento em que enfrentamos uma pandemia mundial e em que assistimos, neste exacto lapso de tempo, ao recrudescimento das condições que possibilitam uma maior propagação de Covid-19, torna-se mesmo urgente contagiar de outras formas. Normalmente, o congelamento indicado tem como resultado o empobrecimento da experiência, já que se escuda, erradamente, numa necessidade de não perturbar, de não inculcar, de não adestrar, defendendo que a pessoa deverá “descobrir por si”. Mas nós descobrimos uns/umas com o/as outro/as, já que todo/as somos, não UM, mas DOIS.

© Imagem de entrada: Quarto em Arles, Vincent van Gogh

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