Produção, Criatividade, Palcos. Qual o futuro da cena musical? / Isabel Worm

Consultora Artística e Cultural do Convento São Francisco e outros Equipamentos Municipais de Coimbra, Isabel Worm, arquitecta de formação – fundadora do Atelier Arsuna/ Estúdio de Arquitetura e Artes Cénicas -, é nome que não poderia faltar a esta reflexão pela vasta experiência que acumula na gestão de programação, de palcos, de complexas agendas culturais.

Antes da sua chegada à Lusa Atenas há todo um percurso difícil de sintetizar. Foi Diretora do Teatro Tivoli BBVA, para a UAU; dirigiu o Centro Cultural Olga Cadaval desde a abertura ao público em 2002 até 2011. Foi programadora deste último espaço e acumulou a direção de produção e direção técnica. Simultaneamente, a incansável Isabel Worm, foi também Diretora do Festival de Sintra, cuja programação se apresentava no Centro Cultural Olga Cadaval e ainda nos palácios, quintas e parques dessa Vila. Nessa mesma altura, porque ainda lhe sobrava tempo, fez parte do grupo de programadores (RIP – Reunião Informal de Programadores), num trabalho com a ARTEMREDE. Após um tempo em Itália, regressa a Portugal para ocupar o lugar de diretora de cena no Teatro Nacional de São Carlos e, mais tarde, fez parte da equipa que abriu o Centro Cultural de Belém, nesse mesmo cargo. No CCB, onde abraçou também a direção técnica, esteve até à sua saída para a Expo 98, onde integrou a equipa do Teatro Camões, tendo feito a direção técnica da ópera que encerrou a programação daquele teatro – “O Corvo Branco”, do ímpar Philip Glass, com encenação de Bob Wilson.
É com Isabel Worm, com toda a sua valiosa experiência adquirida, que reflectimos hoje sobre os últimos 12 meses na vida de quem tem a seu cargo a responsabilidade da gestão de toda uma programação e equipa.

Se lhe pedisse para escolher uma nota musical ou frequência hertziana ou um valor em decibéis para resumir estes últimos 12 meses, qual seria e porquê?
(IW):
Não consigo escolher uma, mas antes a enorme variação de frequência presente num grito de medo, de alerta, de dor, de “já não aguento mais!!”. O permanente oscilar entre o “vai ficar tudo bem” e o “isto nunca mais vai voltar a ser o que era!”.

Houve tranquilidade e disponibilidade – física e mental – para pôr em prática o que anteriormente lhe era quase impossível, como tirar projetos/programações da gaveta ou reorganizar-se?
(IW):
Creio que nunca trabalhei tanto, sem sair do lugar, e com tanto stress emocional à mistura, como nestes meses. No início, desvalorizei totalmente a situação e a ideia ganhar, para mim, as horas que passo na A1 – entre Coimbra e Colares – levou-me a acreditar que conseguiria não só retomar vários projetos meus – suspensos desde que abracei o desafio de programar o Convento São Francisco -, mas até implementar alguns hábitos salutares na minha vida, que tanto gostaria de conseguir. Porém, os dias passavam, (e passam), a uma velocidade e intensidade, numa amalgama de assuntos, emoções e eu, que até sou muito organizada, dava comigo sem saber sequer por onde começar…

Como encarou e encara os concertos em streaming? São de alguma forma um motor para se manter uma certa actividade, – e.g. do Convento São Francisco – , se sentir activo?
(IW):
A questão dos concertos em streaming, desde o início, levantou-me várias questões. Este caminho que foi necessário, é certo, pode ainda vir a demonstrar ter sido uma aposta com efeitos perversos e que é ainda demasiado cedo para avaliar. É obvio que os artistas encontraram no streaming uma forma de não parar, de poder continuar a criar, a sentir um retorno do público, mesmo que o retorno aconteça num formato muito diferente daquele que um espetáculo ao vivo oferece. Mas retorno é. No entanto, houve uma grande banalização destas atuações. De repente, há uma enorme proximidade (aparente) dos artistas, um toque de voyeurismo, que, na verdade, é o oposto do que um espetáculo ao vivo oferece. Se por um lado se desmistifica, por outro também se desvaloriza. E entramos na temática económica, também. Uma questão que é fundamental é a da valorização da cultura. A profissionalização dos artistas. Pagar a quem trabalha! Temos já algum caminho feito, mas em Portugal está ainda tanto por fazer neste percurso.
Relativamente ao Convento São Francisco, claro que teria sido bom poder ter muitos mais e melhores conteúdos para manter viva a chama, num tempo em que tudo foi virtual… No entanto, e porque somos um espaço de acolhimento, não gravamos os espetáculos que apresentamos, como fazem os teatros que apresentam uma programação por temporada. Para poder alimentar as redes sociais tivemos que ser mais criativos.
Neste momento, optar pelo streaming, a partir do momento em que o público pode estar nas salas, não me faz sentido pois é fundamental restabelecer os hábitos culturais, a menos que o espetáculo não se possa fazer de outro modo, como foi o caso da 9.ª Sinfonia de Beethoven, no Dia da Europa. O palco não chegou para acomodar a grande quantidade de músicos e coro que esta obra exige. A única forma que tivemos para contornar essa dificuldade foi a de excluir a presença do público no grande auditório, invertendo a disposição da orquestra, com o maestro ao fundo do palco e posicionando o coro na plateia.

Está a desenvolver produções ou programação para a nova temporada pós-confinamento que se avizinha? Se sim, pode levantar a ponta do véu?
(IW):
Nunca parámos de programar e reprogramar e voltar a reprogramar. Houve sempre a vontade de acreditar que a situação iria melhorar. Foi no meio do pandemónio (desta pandemia) que programámos todo o Semestre Europeu. Adaptámos as ideias originais à nova realidade e readaptámos quando a realidade nos voltou a surpreender. Estamos a gerir os adiamentos, tem sido sempre essa a postura – tentar não cancelar os compromissos assumidos, procurando minimizar os estragos (a artistas, produtores e técnicos) dentro do que está ao nosso alcance.
Levantar o véu, claro que sim! Vamos ter novamente “Dar a Ouvir” a ocupar vários espaços do convento, que este ano conviverá com os espetáculos do Semestre Europeu que foram adiados do período de confinamento. No primeiro fim-de-semana de setembro o Cem Portas marcará a abertura da programação 20/21. Teremos Correntes de um só Rio em outubro, como sempre, em torno ao Dia Mundial da Música – 01 de outubro – que Coimbra, com a sua canção e a sua guitarra, assim festeja. O Misty Fest também será acolhido este ano, como vem sendo hábito, no mês de novembro. Todos estes festivais se vão entrelaçando com a programação eclética, mas sempre de qualidade, que a cidade pode ver nos vários espaços do Convento São Francisco.

Como se organiza uma agenda com tantas incertezas e reagendamentos constantes? É exequível programar concertos, festivais, leituras musicadas… a curto e longo prazo?
(IW):
Quando cheguei ao Convento São Francisco não havia programação feita para o mês seguinte. Nos dois primeiros anos conseguimos ir “ganhando terreno” e no início de 2020 estávamos a fechar a programação praticamente a um ano. Agora, com a pandemia, perdemos outra vez essa distância, precisamente pelas dificuldades acrescidas com a instabilidade da situação. Como se organiza? De mente aberta, com muito trabalho, muitos contactos, muita gestão e capacidade de adaptação. Claro que dizer que se faz programação assim, é uma inverdade. Em tom de brincadeira (o humor é muito preciso) costumo dizer que atualmente ninguém consegue programar, mas sim jogar um complicado tetris. Ir avaliando como “encaixar” as várias peças, as que estavam pensadas para o seu tempo e as que fomos obrigados a reagendar. Não tem sido fácil e junta uma boa dose de frustração, até porque, para além de pensar a gestão de públicos, estamos a gerir artistas, técnicos, produtores, que vêem as suas vidas, permanentemente, adiadas. Cada reagendamento, para mim, é uma dor de cabeça e uma dor de alma, precisamente pelas implicações humanas que tem.

Sente que a paragem forçada da cena musical transformou o olhar do público e a mesma passou, finalmente, a ser mais olhada como profissão e não como hobby?
(IW):
Não tenho nada essa sensação, como já mencionei. Acho que o tempo o dirá. Sem dúvida que há casos e casos. Artistas que souberam gerir muito bem a sua carreira, outros que não a geriram de todo. Creio que, teoricamente, todos tivemos uma excelente ocasião para perceber a importância da cultura, em geral, da cena musical, em particular, durante estes tempos obscuros. Mas temos esta imensa capacidade de esquecer o que de menos bom se passa nas nossas vidas e é aqui que eu acho que a questão do streaming “avulso” pode vir a condenar ainda mais a profissionalização dos artistas.

Produção. Criatividade. Palcos. Como é a sua rotina de programadora e como vê o futuro do seu sector a partir destas três palavras?
(IW):
A rotina, atualmente, passa demasiado por gerir o impacto dos períodos de confinamento, gerir pessoas, frustrações, tristezas… Muita produção e “reprodução”. Na programação, a criatividade teve que ficar em modo “espera”, pelos motivos já apresentados anteriormente. Quanto ao palco, lugar de excelência para dar asas à imaginação, está agora cheio de condicionantes e de limitações (distanciamento, número de pessoas, máscaras para cantar…eu sei lá…) e, mesmo não querendo ver, no fundo sabemos que perdurará por muito tempo ainda esta situação e o impacto que ela teve e tem nas nossas vidas.

Quão desafiante se tornou este último ano no seu percurso enquanto programadora? Como geriu a falta física dos teus pares, ao seu lado? O que mais mudou na sua perspectiva sobre o seu trabalho?
(IW):
Foi, de facto, muito desafiante. Nunca teria imaginado! Reaprender, repensar e readaptar tudo. Assentou muito nas relações pessoais, mesmo que à distância. Falando de artistas e produtores, antes de mais, mas também do contacto com a Vereadora da Cultura e, sobretudo, com a equipa do Convento. Tivemos reuniões zoom diárias, várias vezes ao dia. Cheguei a marcar reuniões com a equipa toda, mesmo sem ter realmente assunto que o justificasse, mas na perspetiva de criar um espaço para conversarmos, para manter um pouco da nossa rotina, para o team building possível, que se impunha.
“Aluguei” uma “sala zoom” que estava, e ainda está, sempre aberta. Uma roda viva de entra e sai dessa sala de reuniões virtuais. Senti muitíssimo a falta física, claro, de toda a maravilhosa equipa com quem trabalho, mas estivemos sempre muito próximos e procurando apoio mútuo e sintonia.
O que mais mudou na minha perspetiva sobre o meu trabalho? Não mudou muito. Aponto para já, de caras, o que não mudou de todo: a certeza do quão frágil a cultura é e o quão flagrantemente importante foi para mantermos a nossa sanidade mental ao atravessar tamanho deserto. Houve, sim, uma maior tomada de consciência da importância que a programação de um espaço como o Convento São Francisco tem na vida de tantas pessoas das mais diversas áreas artísticas e técnicas. O poder de decisão sobre a programação e o seu impacto humano, confesso, só tornou estes tempos mais complexos para mim. Fomos todos postos à prova. O pior, quero acreditar que já passou, e mantivemos uma união incrível que só pode dar grandes frutos para o futuro que queremos brilhante e mais consciente dos valores incontornáveis da Cultura. •

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© Fotografia: Isabel Worm por Inês Worm Tirone.

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