Produção, Criatividade, Palcos. Qual o futuro da cena musical? / Rui Ferreira

Incansável. Imparável. Inesgotável. Seria uma boa forma de resumir em três palavras Rui Ferreira, senhor e homem do leme da Lux Records (e da Lucky Lux – Record Store). Com o selo da Lux Records pode encontrar edições de Belle Chase Hotel, Selma Uamusse, The Legendary Tigerman, The Parkinsons, Wraygunn, Mão Morta, António Olaio, entre tantos, mas tantos mais.

Fundada há duas décadas e troca o passo, a Lux Records (e bem mais recentemente a Lucky Lux – Record Store) é a menina dos olhos de Rui Ferreira, enfermeiro por formação – embora tendo já trocado a enfermagem pela música, a tempo inteiro -, melómano por paixão – dono de uma muito respeitosa coleção de discos e optamos por desconhecer o número exacto de discos da sua coleção privada -, editor por vocação – ou não tivesse a Lux Records um catálogo viciante, refinado e eclético. Era inevitável trazer Rui Ferreira – como editor independente e de referência de música; não querendo ser redutores com a palavra escolhida, de um universo mais underground – para esta série de artigos de reflexão sobre estes tão atípicos últimos doze meses, na cena musical. O Rui é o claro exemplo de como uma pandemia, na cena musical, desde que bem gerida e quando há estabilidade para tal, pode não ser o sinónimo de paragem total.

Se te pedisse para escolheres uma nota musical ou frequência hertziana ou um valor em decibéis para resumir estes últimos 12 meses, qual seria e porquê?
(RF):
107.9 FM. É a frequência da Rádio Universidade de Coimbra (RUC) e nos últimos 12 meses foi a prova que a vida tem de continuar independentemente das restrições impostas pela pandemia. Neste período fiz sempre, presencialmente, o meu programa na RUC – a “Cover de Bruxelas” – foi uma forma de garantir alguma normalidade. Em março, a rádio celebrou o 35.º aniversário sob o lema “RUC – 35 anos sem restrições” e isso reflecte, na perfeição, a ideia que a criatividade e a cultura não devem parar.

Houve tranquilidade e disponibilidade – física e mental – para pôr em prática o que anteriormente te era quase impossível, como tirar projectos da gaveta ou reorganizar-te?
(RF):
Não pode haver tranquilidade quando somos impedidos de fazer o que gostamos. Os projectos do momento são tantos e sempre em marcha que não houve disponibilidade para recorrer às gavetas.

Como encaraste e encaras os concertos em streaming? São de alguma forma um motor para se manter uma certa actividade, sentires a música que editas mais activa?
(RF):
Podem ser uma forma de manter os músicos em actividade, mas acho que não têm grande interesse. A magia dos concertos ao vivo está na interactividade que se cria e nas relações que se geram a partir daí. Assistir a um concerto em streaming é como ver um concerto editado num DVD: está a anos-luz da experiência única que pode ser um concerto ao vivo.  

Estás a desenvolver produções ou edições da Lux Records para a nova temporada pós-confinamento que se avizinha? Se sim, podes levantar a ponta do véu?
(RF):
A Lux Records não deixou de editar em função dos confinamentos e das restrições. Em 2020, entre janeiro e maio tivemos 10 edições, a maioria em pleno confinamento. Nunca fui a favor de ter discos pendurados à espera do momento certo para editar, acho que devem ser editados quando estão prontos. Deixar a vida dos artistas em suspenso durante seis ou mais meses pode ser considerado estratégia, mas para mim não faz sentido. Os próximos álbuns a serem editados pela Lux Records são: Tracy Vandal & John Mercy – “Midnight Presents”; Birds Are Indie – “Migrations-Travel Diaries #2”; Tricycles – “Tricycles” (reedição em vinil); e a compilação “Cover de Bruxelas Sessions” com sessões que os D3O, Raquel Ralha & Pedro Renato, Birds Are Indie, Dirty Coal Train e Catenary Wires gravaram para o meu programa “Cover de Bruxelas”, na RUC.
Haverá, também, a edição de singles em vinil dos Parkinsons, Twist Connection, Wipeout Beat, John Mercy, Mancines e Birds Are Indie. A partir de setembro, novos discos de Ray, Duques do Precariado, Bloom (alter-ego de JP Simões), John Mercy e Victor Torpedo & Tracy Vandal.

Como se organiza uma agenda com tantas incertezas e reagendamentos constantes? É exequível editar álbuns, CD ou vinis, com as bandas tão paradas?
(RF):
Exequível é, correm-se mais riscos porque não há concertos ao vivo (uma boa fatia das edições era vendida nas digressões ao vivo dos artistas da Lux). Porém, é a única forma de manter as bandas activas. Editámos em 2020, em pleno confinamento, discos de Victor Torpedo, Birds Are Indie e Twist Connection, e em 2021 já temos material novo destes artistas. Se tivéssemos adiado esses discos em 2020, haveria discos novos em 2021?

Sentes que a paragem forçada da cena musical transformou o olhar do público e a mesma passou, finalmente, a ser mais olhada como profissão e não como hobby?
(RF):
Acho que no grande público essa transformação não aconteceu, agora nos artistas a transformação impõe-se. A partir de agora, é fundamental que os artistas se assumam como profissionais, que tenham estatutos definidos nas Finanças e façam os seus descontos para a Segurança Social.

Produção. Criatividade. Palcos. Como é a tua rotina de editor discográfico e como vês o futuro do teu sector a partir destas três palavras?
(RF):
A produção continuará a acontecer porque a criatividade mantém-se em níveis elevados. Acho até que as dificuldades criadas pela pandemia são um estímulo para a criação. As maiores reticências vão para os palcos que vão demorar a atingir os níveis de normalidade. Por isso temos que nos adaptar, não vamos castrar nas edições mas vamos seguramente apostar mais em edições limitadas.

Quão desafiante se tornou este último ano no teu percurso enquanto editor? Como geriste a falta física dos teus pares, ao teu lado? O que mais mudou na tua perspectiva sobre o teu trabalho?
(RF):
Por estranho que possa parecer este último ano foi o mais produtivo de sempre em termos de edições na Lux Records. Tentei sempre que as coisas fossem o mais normais possível. A minha perspectiva não mudou muito. Eu sou um melómano e estou na indústria musical por amor à música. Não há vírus, nem pandemia, que seja capaz de mudar isso. •

+ Lux Records
© Fotografia: Sara Matos.

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