Músico encartado na sua casa-mãe, Luca Argel – músico, compositor e poeta – trocou o seu Brasil por Portugal, com a justificativa oficial do seu mestrado em Literatura na Universidade do Porto. E de uma coisa temos a certeza, em Luca é impossível separar o encantador de palavras do sedutor de acordes e ritmos; músico-poeta carioca que transforma o seu ADN musical em melodias de uma simplicidade que de simples nada têm.
Criativo imparável que conta com vários trabalhos editados, na música e na poesia. Na música, começou com um “Livro de Reclamações”, deu-nos de seguida “Tipos que Tendem para o Silêncio” e hasteou uma “Bandeira” mesmo antes de dar a conhecer “Conversa de Fila”, para depois nos dizer que “Fui ao Inferno e Lembrei-me de Ti”; pelo meio musicou poesia de Fernando Pessoa, junto com Ana Deus, em “Ruído Vário”. Luca Argel é um músico com um samba só seu que lhe habita a alma e se cola aos nossos ouvidos, e que nos deu, este ano, um surpreendente e excepcional trabalho discográfico, em forma de Jornal. “Samba de Guerrilha”, um Samba Opera irrepreensível – Samba Opera, braço da Rock Opera popularizada por Peter Townshend (The Who) com “Tommy” (1969) – feito de histórias que intercalam músicas com personagens vários; canções que interligadas nos dão uma narrativa forte e coesa que foca o homem e seus conflitos, uma viagem na história do seu Brasil. Luca Argel é música obrigatória e a sua reflexão, sobre ser músico confinado, era-nos inevitável.
Se te pedisse para escolheres uma nota musical ou frequência hertziana ou um valor em decibéis para resumir estes últimos 12 meses, qual seria e porquê?
(LA): Os 330hz, que descobri ser a frequência de ressonância da sala da minha casa, onde misturei meu último disco, e onde passei a maior parte deste tempo.
Houve tranquilidade e disponibilidade – física e mental – para pôr em prática o que anteriormente te era quase impossível, como tirar projectos da gaveta ou reorganizar-te?
(LA): Nos primeiros meses houve, e estava até a curtir este tempo de recolhimento, mas chegou uma hora que bateu aquele desânimo. O tempo disponível deixou de ser produtivo, pelo menos criativamente. Consegui tirar algumas coisas da gaveta, como o “Samba de Guerrilha”, mas continuo ainda muito longe de esvaziá-la…
Como encaraste e encaras os concertos em streaming? São de alguma forma um motor para se manter uma certa actividade, te sentires activo?
(LA): No início foram. Lembro que na primeira live que fiz estava nervoso de uma forma que nunca fico nos concertos. E foi bom pra manter alguma actividade durante o confinamento mais pesado, sim. Foi bom também pra descobrir a medida da falta que faz um público presente… Um concerto presencial vale mais que mil streamings.
Estás a desenvolver músicas/produções para a nova temporada pós-confinamento que se avizinha? Se sim, podes levantar a ponta do véu?
(LA): Estou sempre a produzir para as próximas temporadas! No momento meu foco é montar o espetáculo do Samba de Guerrilha encenado, que está sendo um grande desafio. Quando tiver isto encaminhado, começo a trabalhar numa continuação do álbum, mas com temas autorais.
Como se organiza uma agenda com tantas incertezas e reagendamentos constantes? É exequível programar ensaios, concertos e tours a curto e longo prazo?
(LA): É, só não se pode ter apego demais aos planos, porque de uma hora pra hora pode vir tudo abaixo, e tens de recomeçar do zero. E isto aconteceu várias vezes ao longo de 2020. Claro que a curto prazo é sempre um pouco mais fácil, mas há produções que só se pode fazer a longo prazo. Estas foram inviabilizadas completamente.
Sentes que a paragem forçada da cena musical transformou o olhar do público e a mesma passou, finalmente, a ser mais olhada como profissão e não como hobby?
(LA): Alguns passos foram dados nesta direção, sim. Mas está mais fácil convencer o público que o Estado.
Produção. Criatividade. Palcos. Como é a tua rotina de músico e como vês o futuro do teu sector a partir destas três palavras?
(LA): Rotina pressupõe uma certa regularidade e repetição, então não sei se posso dizer que tenho uma… Sei como vai ser meu dia até terminar o pequeno almoço, depois pode ser sempre uma surpresa, cada dia tem demandas muito diferentes. Justamente porque estou ao mesmo tempo nestas três frentes: criar, produzir e apresentar. Sinceramente não vejo grandes mudanças estruturais no funcionamento do sector com relação ao que era no pré-covid, salvo a hipótese alentadora de conseguirmos aprovar um bom estatuto dos trabalhadores intermitentes, que pode fazer uma grande diferença na vida dos profissionais da área.
Quão desafiante se tornou este último ano no teu percurso enquanto músico? Como geriste a falta física dos teus pares, ao teu lado? O que mais mudou na tua perspectiva sobre o teu trabalho?
(LA): Foi um ano que desafiou sobretudo a nossa paciência. A gestão da espera, da expectativa, foi o mais difícil. Acho que me tornei uma pessoa mais receosa depois desta experiência, menos tolerante aos riscos. Mas ainda levarei tempo para perceber e processar essas e outras transformações. No trabalho fiquei mais criterioso com as minhas prioridades, focando mais no que interessa, e aprendendo a abrir mão do que é secundário. •