Eu pensava que o tínhamos de explicar às crianças, mas apercebo-me que também temos de instruir (alguns) adultos. E se não quiserem ser instruídos, pelo menos ficam a saber que nós percebemos, muito bem, o sentido de (muitas) coisas.
“L’ Angélus”, de Jean-François Millet, não é a primeira vez que me acompanha no pensamento: já me socorri da sua atmosfera para questionar a forma como na Modernidade se eclipsou exemplarmente o tempo do que se chama Natureza, e mantenha-se esta designação por agora, porque, como nos propõe Cristina Campo, a maturidade também se precipita pela verdade que deve tornar-se natureza. O que vemos em “L’Angélus”? Um casal de agricultores no campo, banhado pela luz do amanhecer, que reza para interceder por, certamente, ter um bom dia; mas ter um bom dia significa também ter uma boa colheita, ter forças para trabalhar, ter sorte face às imprevisibilidades, ter resistência para continuar, nomeadamente, na alternância da noite e do dia. E aqui está o ponto inicial de onde devemos partir: a vida é composta de alternância, e é desta que provém ritmo, movimento, ou seja, as coordenadas valiosas de mensurabilidade daquela coisa invisível, mas que marca – o Tempo. Não há dias eternos, a não ser que consideremos o idílico “domingo” enquanto paradigma do Paraíso; mas também não vale a pena pura e simplesmente inverter os termos, e ir à Noite como local de paradisíacas descobertas, já que seria, com a maior probabilidade, também aqui, a noite do mesmo “domingo”. A ideia de “paraíso” é sempre buscada no afunilamento da complexidade, sob a capa de estar a pensar a abundância e a plenitude; mas assim como não há “vazio” puro, também a abundância e a plenitude, que podem muito bem ser respiráveis, não se se circunscrevem a “Um”, mas partem, antes, de “Dois”. Por tal: nem só dia, nem só noite, mas as duas coisas, simultâneas na sua existência, mas alternadas na sua manifestação, demonstrando-nos, por isso, o ritmo, o movimento, o Tempo, em suma.
Josep Maria Esquirol sabe-o e di-lo em Humano, más Humano. Una antropología de la herida infinita, que tomo a liberdade de traduzir: “O dia é um arco, não uma recta, e nesse arco estão e introduzimos as repetições quotidianas que nos alimentam e reforçam”, “Assim, a poética do dia consiste em converter o dia em musculatura discreta, vestido e hábito. A qual, por certo, não é a arte do sedentarismo. Porque nómada não é quem não tem casa, mas antes quem faz do caminho a sua casa ou quem faz casa enquanto caminha”; “Cada dia tem a sua noite e, afortunadamente, a noite apresenta-se reparadora”, “Enquanto o curso do dia nos leva a seguir uma suave curva, a noite escura detém-nos num solo instável.” Como se resolve esta tensão? Sim, porque dia e noite não são, como bem avisa o filósofo espanhol, composição de uma dialéctica. Como se resolve, então? “O dia, pela sua parte, ajuda-nos a seguir o caminho e a não ficarmos definitivamente cravados no meio da noite escura – quando somente resta a paciência de esperar até que se faça dia –. Na verdade, o dia ajuda-nos, antes, a não absolutizar a noite escura; a advertir que a noite tampouco é tudo, porque o dia não é uma alucinação. Existe o dia.”
Sabemos muito bem, creio, que a “noite” é o berço do sonho, e que o “dia” é o lugar das mãos que trabalham: e não são necessárias as duas acções? José A. Bragança de Miranda chamou ao Romantismo “estilização menor” da Modernidade/do Moderno, com a “maior” a reservar-se ao Iluminismo: não estarão aqui operantes as imagens, também, da noite e do dia? E não são elas apreensíveis apenas porque as duas coisas existem em simultâneo, sejam a noite e o dia, sejam o Romantismo e o Iluminismo? Os sonhos podem bem ser nocturnos, estejamos a dormir ou acordados/as, em vigília, mas a sua inserção no Tempo exige, sim, que se inscrevam nesse arco que é o dia. Não costuma dar bom resultado concentrarmo-nos no Um como pressuposto de pensamento: porque faz-nos andar à volta do Mesmo, e restringe a visão a “um lado”, não deixando que avulte uma paisagem, no fundo. E o que significa avultar a paisagem? Significa que se perfila um horizonte, ou seja, que se distende um caminho passível de ser feito, de fazer-se, dando-nos por isso a valiosa percepção de que podemos ir andando, ir continuando: dormindo, sonhando, acordando, respirando, despertando, vivendo.