Serra da Estrela, Beira Baixa e Rabaçal: há muito a descobrir para lá do sabor de um queijo

A ancestralidade permanece agarrada às mãos de quem sabe, mas impera a a necessidade de valorizar estes produtos de Denominação de Origem Protegida da Região Centro e impulsionar o turismo, em prol do fortalecimento das economias locais.


Chef Rui Paula e a sobremesa, que teve o Queijo Amarelo da Beira Baixa DOP em destaque


Iniciemos esta viagem degustativa realizada pelo chef Rui Paula, no seu restaurante DOP, no Porto, ou não fossem os queijos do Rabaçal, Serra da Estrela e da Beira Baixa produtos de Denominação de Origem Protegida (DOP). Em cima da mesa, esteve o Programa de Valorização da Fileira do Queijo da Região Centro.

A seu respeito, Jorge Brandão, em representação da Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Centro (CCDRC), sublinha “a importância de trabalhar os recursos decisivos para a Região Centro”, dando ênfase ao queijo e ao vinho, “produtos com potencial enorme e que podem transformar os nossos mercados regionais”.

A narrativa de um saber a perpetuar

Bolo de alheira com Queijo Serra da Estrela DOP


Roteiro afora, falemos sobre o Queijo Serra da Estrela DOP e o Queijo da Serra Velho DOP. Os primeiros registos deste produto remontam à época dos Romanos, daí que seja considerado o mais antigo de todos os queijos portugueses, e já Celorico da Beira ter-se-á estreado, no reinado de D. Dinis, na criação de uma queijaria. Sem esquecer a “Tragicomédia Pastoril da Serra da Estrela”, do século XVI, da autoria do poeta e dramaturgo português Gil Vicente, com referências a este valioso queijo, que, nos finais do século XIX, conquista notoriedade nas cidades de Lisboa e do Porto.

“Hoje, temos outras potencialidades e características na gastronomia.” Quem o diz é Joaquim Lé de Matos, Presidente da Direcção da Estrelacoop, a Cooperativa dos Produtores do Queijo Serra da Estrela, que descreve o Queijo da Serra Velho DOP como “um queijo completamente diferente a que os portugueses certamente estão habituados”, pois apresenta pasta semi-dura e extra-dura, de cor laranja acastanhada. “Para já, é muito fino e tem um período mínimo de maturação de 120 dias. Estamos a falar de um queijo que tem um sabor e um aroma bastante agradáveis, mais intenso, persistente, forte ou ligeiramente forte, um pouco ou levemente picante a que as pessoas associam, muitas vezes, ao levemente salgado”, explica. 

O Queijo Serra da Estrela DOP amanteigado apresenta uma pasta semi-mole, de cor branca amarelada. “Tem um aroma e um sabor bastante agradáveis, meio acidulado, mas com bastante profundidade. É aquele que persiste na sua degustação.” A esta exposição, Joaquim Lé de Matos reforça que deve ser sempre cortado do meio até à casca. “É um erro [abrir o buraco ao centro]”, razão pela qual deve ser cortado à fatia, “para que possamos buscar os sabores que estão no centro e que vêm de dentro para fora”.

De acordo com o que está no Caderno de Especificações de Denominação de Origem, os dois tipos de queijos são feitos a partir de leite cru de ovelha da raça Serra da Estrela. A este junta-se a flor do cardo, que pode ser proveniente da Serra da Estrela e do Alentejo, por exemplo, para coalhar o leite. Com a ajuda das mãos sábias de queijeiras e queijeiros, é feito o queijo. “Estamos a falar de um universo de 31 produtores de queijo.” 


Lombinho de vitela com Queijo da Serra da Estrela DOP

Fazer queijo é uma arte, mas importa perpetuar a tradição. Face a esta premissa, a Escola Superior Agrária, do Instituto Politécnico de Viseu, abriu as portas à Escola de Queijeiros, que já vai na segunda sessão. “São jovens que estão na continuidade geracional, em que os pais e/ou os avós, por afinidade, e por uma questão emocional em relação à região, estão a sair do Litoral e a ir para o Interior, no sentido de dar continuidade às queijarias dos pais ou dos avós.” A mesma oportunidade é dada a quem quer ser pastor, viabilizada na mesma instituição de ensino da cidade de Viriato. Fora isso, há pouco mais de duas centenas de pastores na Serra da Estrela, “a alma do Queijo Serra da Estrela”, como são designados pelo Presidente da Direcção da Estrelacoop.

Quanto aos criadores da raça Serra da Estrela, o número ascende a 124, com idades superiores a 60, 65 anos, sendo a qualidade do leite uma uestão preponderante nesta matéria. “A Estrelacoop tem sempre cuidado com as vertentes da produção do leite e da produção do queijo, porque a origem de um bom Queijo Serra da Estrela advém, sobretudo, da qualidade do leite”, realça Joaquim Lé de Matos. Para a produção do Queijo Serra da Estrela DOP, o número efectivo de cabeça não chega a 15 mil. “É significativo para a produção.”

De produção artesanal, o Queijo Serra da Estrela DOP prima pela qualidade. “Não estamos a falar de quantidades industriais, estamos a falar em quantidades, que permitem preservar a autenticidade de um produto. Se quiser, em tempo normal – fora do contexto da panedemia –, estamos a falar de cerca de 250 toneladas de produção, o que não é muito!”

Apreciado dentro e fora de portas, para Joaquim Lé de Matos, “o Queijo da Serra da Estrela DOP deve ser um produto de nicho, porque nós mantemos a tradição. Tem história! É o pai dos queijos portugueses. Gil Vicente evoca o Queijo Serra da Estrela na sua literatura. D. João III, depois de feitos, à candeia, na vila de Seia, levava 500 queijos para a mesa da Nobreza, em Coimbra. É uma tradição! É um legado que queremos transmitir. Devemos sempre associar ao produto a sua história e saber transmitir isso!”

Onde os afinadores de queijo passaram à história


Carpaccio de vitela com Queijo Picante da Beira Baixa DOP ralado


Rumemos ao concelho de Castelo Branco, onde “antigamente, as queijarias estavam dispersas pelas propriedades e, como não havia tecnologia de frio, para conservar o leite, o leite tinha de ser rapidamente transformado em queijo e este tinha de ser salgado. O queijo era feito todos os dias, com o leite de um único rebanho, de uma única pessoa.” Era feita a pré-cura, que durava cerca de duas semanas. “Depois, passava esse afinador, o queijeiro, que recolhia os queijos. Terminava a cura em instalações próprias e fazia a comercialização.” A história é contada por Joaquim Dias, representante da Associação dos Produtores de Queijo do Distrito de Castelo Branco, entidade gestora da DOP do Queijo da Beira Baixa.

Com a passagem do tempo, quem detinha essas propriedades passou a cingir-se à produção de leite e, os antigos afinadores, profissão que caiu em desuso, deram lugar aos produtores de queijo. Hoje, os seus descendentes são os proprietários das sete queijarias do distrito de Castelo Branco, que produzem Queijo da Beira Baixa DOP. “São pessoas novas. A mais velha é um cavalheiro com 65 anos. O negócio já vinha dos pais e ele transformo-o de afinador para transformador. É uma empresa que já tem continuidade geracional assegurada.” As restantes queijarias estão na posse de pessoas com idades compreendidas entre os 40 e os 50 anos.


Bacalhau, grão de bico e Queijo de Castelo Branco Beira Baixa DOP


A produção de Queijo da Beira Baixa DOP divide-se em três tipos: Amarelo, Castelo Branco e Picante. “O Amarelo é um queijo feito à base da mistura de ovelha e cabra, coagulado com coalho animal. O Castelo Branco é feito só com leite de ovelha e é coagulado com cardo. O Picante tem os mesmos ingredientes do Amarelo, ou seja, misturas de leite de ovelha e cabra e coagulado com cardo animal. A diferença deste tipo de queijo tem a ver com a cura própria, muito artesanal, única. Enquanto os dois primeiros têm tempos de cura de, no mínimo, 40 dias, o Queijo Picante DOP tem o mínimo de cura de 60 dias.” 

Sobre o coalho animal, em tempos idos era necessário abater um cabrito ou um borrego, para obter os sucos do estômago de um desses animais, a partir dos quais se extraia a enzima que servia de coalho. “Agora é artificial, mas feito da mesma maneira, ou seja, a partir da enzima que existe no estômago do cabrito e do borrego.” 

O leite cru, com que são feitos estes queijos, é proveniente de ovelhas e cabras da região. “Falamos, concretamente, da ovelha Merina e da cabra Charnequeira”, mas também há outras raças, que se adaptam à região. “Normalmente é a raça [francesa] Lacaune, cujo leite também é utilizado nestes queijos.” A pastagem é feita livremente o ano inteiro, mas há excepções: “são recolhidos na época mais desfavorável, quando está a chover, ou nas épocas de pré e pós-parto.” Os animais rondam os 20 mil ovinos e cinco mil caprinos.

Feitas as contas, Joaquim Dias conclui “aa nossa região, o queijo comercializado com Denominação de Origem é, hoje, uma fracção ínfima do que uma queijaria produz, apesar da maior parte do queijo ter condições para ser comercializado com Denominação de Origem Protegida.” A mudança deste paradigma seria possível se houvesse espaço para transformar o Queijo da Beira Baixa DOP num produto turístico. Porém, parece que ainda há trabalho a fazer. “Temos, para já, de chamar mais pessoas ao território, mostrar o que lá há e as pessoas habituarem-se a fazer a distinção entre um queijo de ovelha e um Queijo de Castelo Branco, entre um queijo cremoso e um Queijo Picante da Beira Baixa. Não obstante os queijos terem os mesmos ingredientes, não são iguais. É esse marketing que temos de prolongar.” 

Há falta de produtores de leite e de queijo


Todos os tipos de queijos DOP da Região Centro cabem nesta tábua


Desçamos até ao Rabaçal, freguesia de Penela, no distrito Coimbra. A este concelho somam-se os de Condeixa e Soure, bem como Alvaiázere, Ansião e Pombal, pertencentes ao distrito de Leiria, no que diz respeito à produção do Queijo Rabaçal DOP. “Não temos raça autóctone”, diz-nos Diana Ventura, Técnica Superior da AproRabaçal – Associação de Produtores do Rabaçal, referindo a lenda das ervas de Santa Maria, que influenciam no aroma do leite e, por consequência, no sabor do Queijo do Rabaçal DOP. “O leite tem de ser da região e na proporção de três para um, ou seja, de 75 por cento de ovelha e 35 por cento de cabra”, declara. A este adiciona-se, apenas, coalho animal e o tempo de cura nunca é inferior a 20 dias. “É um queijo de pasta semi-dura a dura.”

O universo da produção de Queijo Rabaçal DOP traduz-se em apenas três produtores, que estão na faixa etária entre os 50 e os 70 anos. “Dois dos produtores têm uma geração que poderá perdurar a tradição”, mas o produto está em risco de se extinguir. Segundo Diana Ventura, este número é insuficiente, para garantir a produção do Queijo do Rabaçal DOP, bem como assegurar esta prática no futuro. Além disso, as cabeças de gado estão distribuídas em quantidades desfasadas, ou seja, “temos produtores de leite com dez cabeças de gado e produtores de leite com duas mil cabeças. Neste momento, temos, no total, cerca de dez mil cabeças, o que não é pouco. Está é mal distribuído, isso sim.” 

O número de pastores centra-se em apenas oito. “Pior ainda, é a produção de leite”, realidade que preocupa Diana Ventura. “É um sector primário, em relação ao qual continuamos preocupados em trabalhar o marketing certo, mas se não vendemos o produto, não conseguimos avançar. É uma indústria ingrata! Trabalham todos os dias. Os animais ficam doentes, não tiram férias, não pedimos aos animais para darem mais leite. Temos de considerar a valorização do leite pela proteína, pela gordura, e fazer o pagamento adequado.” 

Face a este panorama, Diana Ventura adverte, ainda, para a necessidade de dar-se prioridade ao Queijo do Rabaçal DOP no que concerne à distribuição do leite O remanescente seria canalizado para a produção dos outros queijos. “Para isso, são precisos projectos como este, que nos ajudem a centralizar; é preciso que os municípios estejam alinhados nesta prioridade; e é preciso que os próprios produtores de leite interajam connosco. É muito importante a comercialização, é muito importante a internacionalização, como o chef Rui Paula estava a dizer, mas mais importante ainda é nós, cá dentro, percebermos que a DOP é para proteger o sector primário”, remata a representante da AproRabaçal.

No âmbito do Programa de Valorização da Fileira do Queijo da Região Centro, e além da Escola de Queijeiros e da Escola de Pastores, do Instituto Politécnico de Viseu, estas acções de formação estão a decorrer na Escola Superior Agrária de Coimbra e na Escola Superior Agrária de Castelo Branco. O objectivo é encontrar uma resposta imediata aos problemas relacionados com a falta de pastores e colmatar a iminente extinção dos produtos aqui referidos, nomeadamente o Queijo da Beira Baixa DOP e o Queijo do Rabaçal DOP, incrementado pela redução da produção de leite canalizado para a produção destes produtos específicos. Problemas que urge solucionar a bem da economia local e regional.


+ InovCluster
+ Estrelacoop
+ Associação dos Produtores de Queijo do Distrito de Castelo Branco
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+ Restaurante DOP
© Fotografia: João Pedro Rato
Legenda da foto de entrada: Queijo do Rabaçal DOP com compota de três pimentos

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