Haverá quem nos embale mais e melhor do que Chagall, também? Terminar este ano, de 2021, com a sua magia, a luz incandescente, a ternura tão delicada de um pintor assim é, simplesmente, e resumível numa palavra: luxo!
A boa notícia é que é um luxo acessível, digamos assim, porque, até ver, ninguém, mesmo ninguém, pode roubar o que sente alguém e toda a pessoa, toda ela, seja amarela, rosa, verde ou azul, pode ver, e/ou cheirar, e/ou tocar, e/ou ouvir, e/ou saborear. Não existem condições especiais para experienciarmos uma obra de arte, ou melhor, explico-me: os rituais são encantadores e importantes, e devem ser preservados; mas não existem protocolos estritos que coordenem linearmente a experiência. Podem ser transmitidas sabedorias, na forma de testemunhos; e em determinadas circunstâncias até podem efectuar-se treinos intensivos do olhar, do olfacto, do tacto, da audição, do gosto; mas não se pode submeter a experiência radical de outrem a condições estritas externas. Aliás, não será por acaso que a palavra “gosto” aglutina a apreciação que se faz da arte: porque sintetiza um processo de integração, de interiorização, que significa, pois, a existência de uma convivência interna ao sujeito. Existem formas de devastar uma pessoa, no entanto, que se saiba, ou pelo menos que disso tenha conhecimento, não se pode “colonizar” a pele dos seres humanos. E escrevo “pele” para dizer aquela fronteira que tem dentro e fora, que é porosa, que fecha, mas que também abre, aquele órgão expandido que tanto nos protege como nos mostra.
Talvez convenha aqui alertar para o facto de que a arte não costuma ser uma bofetada de realidade, embora as obras de arte nos possam dar murros no estômago, o que, claro, não deve ser interpretado literalmente: “dar um murro no estômago” significa aqui que uma obra de arte pode prover-nos de uma consciência aguda sobre determinada “realidade”. Todavia, o que não deverá ser visto neste contexto como uma contradição, deve-se frisar que a arte cria mais “realidade”, num duplo sentido: mais realidade porque intensifica; mais realidade porque permanece na trama inevitável do mundo. Além disso, uma obra de arte, porque é obra, e sê-lo tem subjacente um princípio de construção e de fazer bem, é (sempre) boa. Uma obra de arte, assim, não nos transporta para fora do mundo, mas cria mais “mundo”, que é o que fazem, e muito bem, os cavalos, as vacas, os pássaros, as cabras, as noivas, os noivos, os casais enamorados, pintados e pintadas por Marc Chagall e que, passadas várias décadas da sua morte, continuam vivos e vivas, a olhar-nos com extrema atenção.
Um artista faz o que não pode fazer de outra forma, e que tem mesmo de ser feito. O facto de se inscrever no Tempo, que o abraça e inunda, como a qualquer uma de nós, não deverá nunca impedir-nos de perceber que um artista não pode adiar o que dele irrompe. Mesmo que pareça esquisito aos olhos de alguns agora, um artista não tem agenda, mas produz antes uma espécie de infinita adenda ao protocolo com que sela a sua existência e que, afortunadamente, é passível de nos tocar infinitamente. O que é, claro, um luxo!!