João Jacinto e a sua mão transparente

“Eu gosto de jardins transparentes” é uma exposição que permanece na Galeria Sete, em Coimbra, até dia 11 de Junho de 2022: imperdível, obsessiva e que será memorável.

“Eu gosto de jardins transparentes” inaugurou a 7 de Maio e vem acompanhada de um pequeno ensaio escrito por Bernardo Pinto de Almeida, na verdade, uma preciosidade: abre com uma citação de Luiza Neto Jorge provinda do seu poema “Minibiografia” e não deixa dúvidas sobre o “nome” do artista que agora me ocupa. Assim: “João Jacinto é hoje, decerto, dos nomes mais relevantes quando se considera o contexto vasto da chamada arte portuguesa contemporânea. Autor de obra consistente e múltipla que, desde certa margem, ganhou visibilidade própria, destacada e mesmo referencial, foi-se tornando aos poucos no que vulgarmente se designa um artista de culto. Quero dizer, um artista cujo reconhecimento mais forte se vai construindo quase secretamente, assente em pressupostos próprios e, sobretudo, sem que essa margem, forjada em certa obscuridade a partir da qual opera, e em que a obra discretamente se vai desenvolvendo, se tenha dissolvido, e que antes, ao contrário, se reforça como signo do singular.”

Podemos ver estas obras de João Jacinto literalmente ou sublimar, aparentemente, o processo: por tal, existe logo uma luta bem patente, seja na percepção, seja nas consequências existenciais, diga-se assim. Ou seja, alguém que se abrigue num imaginário sado-masoquista, que se incline para cenários hardcore, tem aqui terreno fértil para espraiar-se; alguém que ame a arte, e que tenha da pintura uma concepção arquetípica do mundo, então, vai atingir com esta proposta de João Jacinto os cumes do prazer. E é um prazer que não se restringe à intelectualidade, mas que convoca os sentidos todos: sim, um dos efeitos de “Eu gosto de jardins transparentes” é dar-nos corpo. Todos as obras desta exposição provêm de 2021 e de 2022 e nelas, sem dúvida, há uma mão também transparente: a mão que desenhou e que pintou é a que nos vem tocar invisível e derradeiramente. E vemos como o corpo da mulher, de facto, é pintura, é vertigem, é queda, é contágio, é raiz, é a trave-mestra da obra de arte. Venham todos os hinos que rasuram a diferença, sexual, mas esbarrarão sempre no óbvio: o corpo, nomeadamente, a abertura intensa que o corpo da mulher proporciona. Tratando-se de uma abertura de tal forma brutal que propicia a crueza. 

Mas esta é também a ocasião em que se percebe, pese embora a abertura intensa que o corpo da mulher proporciona, que existe um estar dentro, que pode não sair exactamente quando queremos, podendo mesmo não chegar a revelar-se. Parece-me, de facto, que existe uma luta anterior, uma luta com a deflagração própria do visível. A arte moderna, onde subsumo o que se trata pela nomenclatura de contemporâneo, procedeu a um desvio da percepção: do exterior para o interior, dotando, por tal, a realidade de carácter algo alucinatório. A abertura é a do corpo, é a da obra de arte (como não lembrar, agora, o conceito de “obra aberta” aduzido por Umberto Eco), é a do imaginário, é a da imagem. E muito, afinal, é também em “Eu gosto de jardins transparentes” uma tentativa, em desespero e honesta, para tentar agarrar a realidade: inflamada, ardendo na insónia, caótica, dispersiva. Não será por acaso que as mulheres nestes desenhos com carnação, ou seja, pinturas, vêm ou aparecem em espaços de fechamento: porque há a necessidade de conter, nomeadamente, o que não é por essência estancável. 

Podemos ver estas obras de João Jacinto literalmente ou sublimar, aparentemente, o processo: repito. Transpô-las para o quarto, executando-as como se de um manual se tratasse e com todos os riscos inerentes. Ou, então, como tento provar, perceber que a pintura é um rastilho bem colocado num ponto de difícil nomeação, ponto para o qual o pintor tem de criar, reconstruindo incessantemente, uma geometria protocolar da sua experiência que dá a ver. Nestes termos, quem vê “Eu gosto de jardins transparentes” não é simples voyeur de um dado, mas auxiliar-participativo de uma transposição delicada sobre a luta, em desespero e honesta, por agarrar, com a mão transparente (e a arder), seja o que for. Se aqui vemos corpos firmes de mulheres em ambientes sujos, de caos, de verdadeiros demónios, em ângulos espaciais essencialmente fechados que contrastam com a amplitude da abertura feminina liminarmente associada ao órgão sexual – verdadeiro infinito transcendental, pese embora na pintura se tentem até tiranicamente obstar alguns dos aspersores da redenção, nomeadamente a boca, não os entendo como a degradação evidente da sua condição.

No fundo, João Jacinto, julgo, coloca a questão sempre recomeçada certamente para um artista: como continuar, neste caso, a minha pintura? E talvez estas mulheres que vemos em “Eu gosto de jardins transparentes” sejam também auxiliares-participativas desse escândalo realmente descarado que é continuar, afinal, hoje, a (querer) pintar. Ou, quem sabe…

© Imagem de entrada: Sem Título, 2021-2022, Técnica mista sobre papel. Cortesia da Galeria Sete

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