A Paixão e o Amor

A Paixão e o Amor, hoje também com Bernini.

Habituamo-nos, julgo, creio, pelo que observo empiricamente e por alguma literatura especializada ou específica, a distinguir o amor da paixão: esta fica na alçada do tumulto, aquele da planura. Todavia, julgo, creio, pelo que sinto, pelo que me é dado reconstituir através do que observo, também empiricamente, que existe um amor totalmente trespassado pela paixão e que se prolonga no tempo. Habituamo-nos, também, a considerar a paixão um delírio ao qual não é possível resistir, a uma desordem curta no tempo, a uma explosão esgotável, um estado exangue que resgata da indiferença e que promove as mais insanas loucuras. A paixão, assim, associa-se de forma derradeira ao sexo, e nele acaba por cingir a sua concretização. É de tal ordem o desassossego que habitualmente se considera a paixão um estado com prazo de validade estrito, impossível de fazer repercutir no tempo, em duração. Porque actualmente muito se labora no sentido de acirrar as paixões, diversas são as relações humanas que acabam por gorar-se, desmanchando-se quando os fogos-fátuos se apagam, porque é difícil trabalhar, portanto, na duração. Pelos mesmos motivos, é tendencial a associação que se faz da volúpia ao sexo somente, sem descortinar o intenso erotismo que impregna o quotidiano. Esse erotismo é da ordem de uma intensidade de cariz metafísico, o que nos demonstra que paixão e amor são gémeos e não existe um, sem o outro.

Como os gémeos, partilham similitudes, irmanam-se na familiaridade e na proveniência, porque são gerados na mesma matriz, mas mantêm qualidades e personalidades distintas, embora se pressintam mutuamente: a paixão e o amor, assim considerados, caminham pela vida de mãos dadas. Muitas coisas se escreveram sobre a paixão e o amor: desde manuais de sentimento, passando por ensaios filosóficos, ou mesmo reflexões históricas. Em todas elas há um fundo, certamente, de verdade, exceptuando as prescrições de boas maneiras. Porque a paixão e o amor não são o resultado de boas maneiras, pese embora radiquem no bem e na bondade. Não há manuais de civilidade que disciplinem a paixão e o amor, que são fruto do mistério e do acaso objectivo. Para serem vividos exige-se robustez; e sabemos também que actualmente a robustez é rechaçada e liquidificada. Os corações humanos, quando visitados pela paixão e pelo amor, devem aí fazer a sua casa; para tal as regras não são taxativas, embora deva ser promovida a sabedoria ancestral. 

Por outro lado, existe um tipo de conhecimento que nos leva ao ninho da vida e do mundo, apenas passível de ser acedido através de uma relação entre duas pessoas que se penetram. A condição em que este conhecimento particular se traslada para a vida de todos os dias é muito clara: criando uma espécie de diagrama invisível aos olhos, mas que se acopla ao corpo, meu e do outro. É muito curioso constatar que um núcleo considerável de pensadores, de diferentes espectros, chega ao Outono da vida e defende o amor como o que mais deve ser defendido, registando ainda a forma através da qual as mulheres (aqui falo de mulheres) lhes permitiu o acesso às coisas mais importantes, atenuando simultaneamente o que é acre. Mas esta é uma disposição observável para os homens. E para as mulheres? O homem propicia, sem dúvida, o acesso a uma determinada compreensão, uma compreensão muito específica, seja do corpo, seja da casa, seja do mundo, seja do coração, em termos de presença real: a via directa que precipita o ponto em que tudo deflagra. Ainda: quando uma mulher é amada é absolvida. O amor lava os pecados do mundo e a paixão inscreve-os na carne. 

Hoje trabalha-se no sentido de nos distraírem e de nos distrairmos: tudo nos prepara para que deixemos de ouvir o que intimamente opera, o que no interior quer crescer e desenvolver-se. Ora, o amor e a paixão são grandes colapsadores da distracção, porque criam mundo, criam casa, criam orações íntimas, criam anjos da guarda, facultam asas e raízes. Uma mulher e um homem mutuamente apaixonados são insuperáveis e, no actual estado do mundo, incómodos. Além de tal, são imortais: para o passado, dando as suas mãos a todos os amores que souberam manter a robustez; para o futuro, estendendo uma estrada de flores por onde todos os amantes passarão. O amor mantém, assim, uma exterioridade fundamental.

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