Uma casa.
Permanecemos, sem dúvida alguma, embebidas numa cultura da separação, em que o comum parece simplesmente inatingível. Ensinam-nos a unidimensionalidade, e praticam-na: querem que sejamos homenzinhos de papel recortados, sem espessura nem profundidade, deslizáveis de cenário em cenário, mantendo as mesmas qualidades que, em absurdo, são rarefeitas. E rarefazem para melhor propiciarem a catalogação. Neste tempo sem Deus, nem transcendência, circunscrito a uma imanência voraz, colocam-nos selos invisíveis e zelam pela evacuação de valores que deveriam ser perenes: verdade, beleza, amizade, amor, bondade, paz, justiça. É com um nó na garganta, com uma opressão no peito e com os olhos aguados, que escrevo agora: pela fúria algoz que domina actualmente. E, no entanto, existem pessoas, seres, que persistem na verdade, na beleza, na amizade, no amor, na bondade, na paz, na justiça. E até poderíamos concluir que se trata sempre destas duas grandes possibilidades: por um lado, o descaramento, por outro lado, a firmeza. O descaramento ataca em todas as direcções; a firmeza está enraizada.
Nas mãos, nas nossas mãos, permanece um poder infinito, pois são as obreiras do coração. É desconcertante assistir ao desmascaro de René Descartes, ou seja, da forma como separou alma e corpo e, assim, nos preparou para um agir desgarrado, e, simultaneamente, ver, na actualidade, um coração de um homem ser substituído por outro de um porco. Nós pertencemos a atmosferas e a ambientes. Basta observar a forma, por exemplo, como as pessoas velhinhas que são trasladadas das suas casas, da casa de uma vida, murcham geralmente rapidamente, caindo em depressão por tristeza infinita. Por isso, também poderíamos chamar planta ao ser humano. Os franciscanos e as clarissas chamavam de plantazinhas aqueles e aquelas que vinham e estreitavam a comunidade. Mas a nossa época saliva de niilismo e sabemos que Friedrich Nietzshe, quem desenhou o pórtico da morte de Deus, se impacientou com o mendigo voluntário quando este o elogiou, rechaçando-o sem hesitar.
Uma casa é um halo que nos acompanha. Trespassada virtualmente pela presença dos seus habitantes, que criam ligações invisíveis com os seus passos bem concretos, uma casa guarda a memória das vidas, e é ela própria vida. Constituem-na as pessoas, as paredes, os tectos, as fundações, os telhados e as coisas, todas. Quando ficamos sem a casa somos atiradas, sem mercê, para um vazio opressivo e vertiginoso, para a planície do nada. Todas as pessoas deveriam ter a sua casa. E não deveríamos nunca esquecer, por mais difícil que se afigure agora, que a bondade que decorre da firmeza, assustando o descaramento, liquidifica sempre o perfil dos carrascos. Sempre.