Nascido em 1964, e dotado de duas mãos lúcidas e insones, Kristinn Nicolai, que se apresenta essencialmente como Nicolai, apenas, dá-nos uma pintura inactual, tal e qual o longe de onde ele mesmo provém.
As obras de arte são dotadas de uma atmosfera própria e singular, feita de ar palpável que se apresenta visível aos olhos fechados e abertos, à vez. Quando nos aproximamos de uma obra, de arte, sondando-a, colocando-nos perante ela, existe efectivamente um ar exalado que se deslarga da sua presença eminentemente física. A seguir: a obra de arte pede que a penetremos. Esse ar, atmosférico, e que exala, é da ordem do vapor, e como que nos impregna: entrando através das narinas. Os olhos são películas de adesão ao mundo; a boca, essa, é uma delicada abertura por onde passam as palavras, que se mastigam, que se lambem, que se preparam, e nos preparam, para as trocas efectivas. Mas as narinas são o ponto de passagem privilegiado do ar: inspiração e expiração, até atingir sem reservas os pulmões, próprios, que comungam da respiração total que permeia a Terra. Por isto, uma obra de arte é um activo ser vivente, que faz corpo: atrás, com quem a fez, e à frente, com quem a recebe. Pode ter mais ou menos corpo. As pinturas de Nicolai têm o corpo todo: o que hoje é, de certa forma, inusual.
Penetrada, a obra de arte como que explode em partes, operativas. E a atmosfera? Mantém-se: é o primeiro sinal. Mas a seguir formula-se uma decomposição exacta, tão exacta que essas partes, operativas, vêm ter connosco e fazem-nos dançar, criando simultaneamente todo um décor. É então que as pinturas de Nicolai nos caiem em cima como se se tratasse de um céu tenebrista total, vindo as figuras, humanas, conviver nos interstícios de um sonho que não acaba nunca, sob o seu, dele, olhar penetrante. Creio que hoje são muito raros os pintores que dão o seu corpo à pintura, e a nós: Nicolai fá-lo. Pode certamente não ser o único, mas é-o por inteiro. O que exige, concomitantemente, que também nos demos por inteiro a essa música tão precisa que a pintura de Nicolai nos apresenta.

Desenhador irrepreensível, as suas linhas, tão firmes quanto doces, são capazes de conter a carne própria da pintura, e essas pregas que a pintura cose no mundo, que vêm sempre como feridas tão profundas, abissais. Nicolai, através do desenho, vai cosendo, não remendando, os buracos do ser. Sim: há a centralidade da mulher; há o sexo como centro ordenador existencial; há, há, há, há… Mas, há, sobretudo, um estofo que, tanto amortece a queda no abismo, como dá de comer a quem tem fome de verdade. Assim, aparece a pintura de Nicolai como alimento metafísico. Sim: há o auto-retrato; há o coito; há, há, há, há… Mas, há, assim e também, uma perspectiva anterior de interrogação frente ao mundo através de si, dele, que apenas nos pode exigir uma coisa: a verdade. E a verdade, tanto dele, como a nossa. O que é uma vida? Quem dá a vida? Por quem se dá a vida? Repito. As pinturas de Nicolai têm o corpo todo: o que hoje é, de certa forma, inusual. O que mais temos a ocasião de observar é a criação de interfaces, espécies de caixas de ar que amortecem o encontro: seja do pintor com a pintura; seja da pintura com o observador. Essas interfaces são de ordem abstracto-relativa: seja optando por um discurso monomaníaco; seja optando pelo caos onde tudo vem indistinto. Nada disso se detecta na pintura de Nicolai.
Expõe este ano, individualmente, na Galería Miguel Marcos pela terceira vez – “Studies in Pussy’ism”; a segunda vez foi em 2019 – “Power of the Pussy”; a primeira em 2015 – “CirCulo”. Não perca, se puder, em Barcelona, ainda este ano. Entretanto, quando se deparar com o nome de Nicolai, pare, inspire, expire, e não vire o olhar. Pode eventualmente pensar que até se trataria de uma saga pessoal que corre como um rio, doido e devagar, e quem sabe como por vezes, ou tantas vezes, a vida se entrelaça com a arte de forma admirável, precisa, fértil. Mas não é apenas isso.