Não é a primeira vez que Gustav Klimt me/nos acompanha, agora com “O Beijo”. Provindo da primeira década do século XX, trata-se de um óleo e folha de ouro sobre tela, permanecendo na Galeria Belvedere, em Viena.
Há tempos que as coisas vêm perdendo a sua eficácia simbólica e que os humanos se assustam com as emoções naturalmente provocadas, e alimentadas, pelos rituais. A liquidificação da estátua interior de cada pessoa, talhe necessário para que cada um/a se conheça a si mesmo/a, induz à errância que não permite qualquer descanso. Uma obra de arte é um mediador privilegiado: é uma coisa que interpõe a equidistância. Eventualmente, a minha formação em História da Arte, e decorrente crença e amor que dirijo à arte, pode tornar-me numa fervorosa defensora das obras, de arte, nas quais descortino, e encontro, a capacidade genuína de nos providenciarem, especialmente, alimento e alento. Já repararam como hoje é quase impossível encontrar alguém quieto? Simplesmente: quieto. Seja a contemplar, seja a congeminar o pensamento, seja a ouvir o seu coração. O mundo caótico actual, que dispara em todas as direcções, de cima a baixo, arrasa; e propõe uma indistinção, uma confusão, nefastas. A começar, logo, por uma ausência de diferença entre masculino e feminino, o que “O Beijo”, de Gustav Klimt para nós, vem contrariar.
Existem hoje, sobretudo, duas maneiras de situar as obras de arte: em face do autor, em ordem aos valores do mercado; as duas se co-organizam no sentido de elevar as cotas, seja da fama, seja da especulação, espúrias. Não acredito num artista que pica o ponto da criação; acredito num extremo interior que reluz, que é fogo crepitante e água-benta. Acredito, sim. E não compreendo que se escreva em função do que não se vive. Criar é definir atractores: é de-finir, é de-limitar. Para tal demanda-se uma capacidade de permanecer em atenção que é, quase, sobre-humana; mas que é quase, apenas porque se olvidou a santidade como medida. “O Beijo”, de Gustav Klimt e o nosso, repõe a beatitude e a santidade. Um homem e uma mulher: o começo de todos os mundos, visíveis e invisíveis, sentidos e pressentidos. Não há muito mais do que isto.
É no desamparo que um homem e uma mulher se encontram verdadeiramente. Cobertos de ouro: esse interior que reluz, que é fogo crepitante e água-benta. Não acredito num artista que pica o ponto da criação. Acredito, também, que amar vem como um caminhar sobre águas, tal e qual a imagem legada por Cristina Campo. Não existe um grau-zero da arte e, assim, não existe também uma obra de arte que não percorra o passado, que não escave um buraco no presente e que não se finque, com unhas e dentes, no futuro. Actualmente pensa-se que somos unicamente soberanos e não frutos que rebentam, amadurecem e apodrecem. Certamente que a palavra e a imagem permitem que sobrevivamos à intempérie do mundo, ecoando para lá do estrito tempo das vidas pessoais; mas para que as agarremos, à palavra e à imagem, é necessária robustez – de emoções, de rituais. O que a arte tem de mais bonito, e redentor, é precisamente permitir-nos ampliar a vida, contrariando o recrudescimento vazio, em zénite de desespero, e criando uma respiração própria que vem cadenciar a que nós próprios exercemos. Vamos a correr para onde? Se o que se exige é que paremos e nos beijemos.