A experiência itinerante, o restaurante de Lisboa, o Projecto Matéria em Angola e o Monda. Há novos rumos na vida de João Rodrigues

Residência é uma espécie de viagem imersiva pelos produtos locais e sazonais de 12 regiões do país. Entretanto, há tempo para preparar a abertura de um espaço de restauração num dos bairros mais improváveis de Lisboa e de um outro, em 2024, na região Oeste, com vista para o Atlântico. Para este ano, também está prevista uma expedição pela cultura gastronómica, em Angola.


O chef João Rodrigues estreia, hoje, o seu Residência, com um jantar, a repetir amanhã, dia 21 de Janeiro, e um almoço, agendado para domingo, dia 22, com o chef Vítor Adão. O projecto, que se traduz numa viagem de 12 meses em 12 regiões diferentes do país, começa em Boticas, concelho situado na região do Barroso, classificado recentemente como Património Agrícola Mundial, pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura. 

Mas a sua incursão gastronómica não termina aqui. Em princípio, Maio será o mês de arranque do novo restaurante de bairro, na Rua da Junqueira em Lisboa. Paralelamente, terá início uma expedição em Angola, no âmbito do Ovina Yetu, iniciativa desenvolvida pelo chef angolano Helt Araújo, e cuja ligação é estreita com o Projecto Matéria de João Rodrigues. Para 2024, está planeada a abertura do restaurante do chef português, na região do Oeste. Vai chamar-se Monda e a ligação à terra, à serra e ao mar será, finalmente, a concretização de um sonho.

Começaria por falar deste novo projecto. O que se vai passar aqui e este ano?
Isto não pode ser avaliado como um só projecto. Há uma estratégia, que passa por diferentes coisas, que já começou por diferentes projectos. A primeira activação é o Residência, que começa já em Janeiro, em Boticas, em Trás-os-Montes. O conceito é muito simples: andar pelo país todo, um mês em cada região, 12 regiões, 12 meses. Um ano a cozinhar pelo país, numa perspectiva de usar o que é local e sazonal, e chamar a atenção das pessoas para a descentralização das gastronomia. Se queremos ter um discurso de valorização do interior, dos nossos produtos, convém que as pessoas viajem pelo país, que o conheçam. Foi um bocado com essa ideia por detrás, que iniciámos este projecto em si e que tem o nome Residência, exactamente por isso, porque vamos ocupar um espaço, na ideia de residência artística ou científica. Portanto, ocupamos um espaço e vamos explorar o que esse espaço e essa região tem para oferecer. Isto é, explorar ao máximo com o mínimo de recursos possíveis – não vamos levar nada feito, somos só três pessoas (duas na cozinha e uma na sala). Vamos procurar ao máximo criar sinergias, com os municípios, os produtores locais e os produtores de vinho. 

Todo o trabalho que tem vindo a fazer estão alinhadas com estas residências. Há aqui uma influência do Projecto Matéria?
Embora seja um projecto pessoal, este não é um projecto feito à luz do Projecto Matéria, que existe e é indissociável ao que sou enquanto profissional, portanto vou usá-lo no que fizer de futuro. Estará sempre muito presente e será a base de construção de tudo o que oferecemos. O Projecto Matéria tem a sua vivência. Isto que estou a fazer, vem numa lógica de projectos pessoais e vem da activação que estamos a fazer nesse sentido. Ou seja, são dois universos que vão coexistir e interagir.


“Tanto pode ser num castelo, como pode ser numa floresta, como pode ser numa taberna típica, como será o primeiro. É liberdade e poder desfrutar desses momentos”

O primeiro convidado do Residência é Vitor Adão. Que outros chefs irão fazer parte deste projecto itinerante?
Sim, mas não temos uma regra definida em relação ao número de dias, não temos uma regra definida em relação a se vamos ter um chef convidado. Queremos ter, porque acho que faz sentido. Se vamos ter chefs internacionais… Não há uma regra estabelecida. Tudo pode acontecer. O foco é entregarmo-nos ao que o espaço tem para nos oferecer, entregarmo-nos ao que a região tem para dar e explorar essas vertentes. Vamos procurar espaços icónicos. Mais uma vez, não haverá regras. Tanto pode ser num castelo, como pode ser numa floresta, como pode ser numa taberna típica, como será o primeiro. É liberdade e poder desfrutar desses momentos.

Já estão definidos os locais das primeiras residências. Como é este primeiro espaço, esta taberna típica?
Já temos as 12 [residências] pré-definidas, mas queremos ir lançando, aos poucos, a informação sobre esses locais. Mais uma vez, não há uma regra. Tanto podemos avançar com um local de uma vez ou três de uma vez, mas gostávamos de manter esse secretismo. É claro que iremos revelar o local com alguma antecipação, para que as pessoas possam ter em atenção a marcação nas suas próprias agendas. O primeiro é uma casa com mais de 300 anos. É a Taberna do Pedro ou a “Casa do Pedro”, como alguns tão bem conhecem, numa aldeia perto de Boticas, toda feita em pedra, antiga, lindíssima. A ideia é usar os produtos locais, o que estiver em estação, obviamente, e cozinharmos com os meios que tivermos nesse mesmo espaço.


“Queremos um espaço simples, bonito, que convide a ficar, e que a comida seja muito centrada no produto. Uma comida quase de casa, de conforto, e que seja muito ambivalente em termos de preços”

Entretanto, está a preparar a abertura deste novo espaço, em Lisboa. O que se vai passar aqui? Vai abrir em…
Maio. Se tudo correr bem, mas como nós sabemos, a disponibilidade das matérias-primas, transporte, etc., não está fácil, portanto não posso garantir, sabendo que todos os projectos de obras estão a derrapar. É um espaço situado na Rua da Junqueira, em Lisboa. Queremos que seja um restaurante de bairro. Uma oferta simples.

Será aqui implementada uma democratização gastronómica?
O que eu sinto, e tenho viajado bastante, principalmente no último ano, cá dentro e fora, sinto que há cada vez mais conceito. A verdade é que vão se perdendo os espaços mais característicos e, se calhar, mais emblemáticos da cidade. Ainda se encontram em Lisboa e no Porto, mas Lisboa está a perder-se muito e gostava de fazer um restaurante, um espaço, que voltasse a esse tempo, onde as pessoas viessem para desfrutar, comer. Alguns para comer muito depressa, outros que ficassem mais tempo. Queremos um espaço simples, bonito, que convide a ficar, e que a comida seja muito centrada no produto. Uma comida quase de casa, de conforto, e que seja muito ambivalente em termos de preços. Que se possa comer barato e rápido, mas também se possa comer produto não tão barato e que se possa prolongar a permanência no restaurante. 


“Será um processo gradual, mas, quando abrir tem de estar na plenitude, ou seja, tem de ter a oferta toda definida, para que possamos receber bem as pessoas”

A ideia é ter um restaurante aberto ao almoço e ao jantar?
A nossa perspectiva é que seja um restaurante que esteja aberto o dia todo, todos os dias. Tenho a certeza de que não começará assim, porque preferimos fazer passo a passo e que o restaurante vingue e que as pessoas que estejam aqui a trabalhar tenham as condições necessários para fazê-lo. Temos de perceber os nossos próprios limites. Preferimos começar com uma base pequena e crescer, do que começar com uma base grande e, mais tarde, termos de diminuir. Será um processo gradual, mas, quando abrir tem de estar na plenitude, ou seja, tem de ter a oferta toda definida, para que possamos receber bem as pessoas e, depois, queremos caminhar para esse momento óptimo , que é o restaurante estar aberto todo o dia e todos os dias.

Será um regresso à década de 1980. É isso mesmo!
É um restaurante à antiga, de bairro, onde queremos que as pessoas sintam essa vida. Estamos inseridos num bairro, onde queremos que as pessoas que vivam neste bairro venham viver o restaurante, mas também queremos que seja um destino das restantes pessoas da cidade e para pessoas que venham de fora. Queremos que seja um misto de turista, mas também queremos ter locais. Será muito centrado nessa vivência dos restaurantes antigos, que estão a desaparecer e vamos tentar criar a nossa própria identidade dentro dessa fórmula.

Por que razão foi escolhido este bairro?
Porque foi uma oportunidade e porque tem muito potencial. Tem muita coisa a aparecer. Temos estacionamento atrás, temos o hospital, escolas, hotéis que estão a aparecer por aqui e vão aparecer mais. Digamos que é uma zona muito turística daqui para a frente. É um bairro residencial, portanto achamos que é um sítio bom para explorar.

A selecção de vinhos para a carta está nas mãos de alguém?
Teremos alguém, que não posso dizer ainda quem é. Há muitos segredos. A carta de vinhos vai seguir a mesma linha da comida. Será uma carta ambivalente, com rotação, que terá desde preços mais baixos e preços mais altos, que não se extinga só no que é nacional, um bocadinho para todos os gostos e seguindo a filosofia que queremos para os nossos produtos.


“[…] Estaremos muito próximo de montanha e estamos muito, muito perto do mar. Terá entre oito a dez quartos. Não é um hotel. É um restaurante com quartos”

Sobre o Monda, o restaurante que terá localização na região Oeste, numa quinta…
Não é uma quinta existente, mas nós faremos a nossa quinta.

Nossa?
Nossa, porque quem estiver lá, será sempre uma equipa. 

A abertura está prevista para 2024.
A previsão será para 2024. Temos o espaço, mas não posso divulgar o nome deste espaço, mas já existe. Também estamos ainda em fase de projecto e será um espaço completamente distinto deste. Será um espaço conceptual, criativo, que tem uma parte óbvia de produção própria, que engloba animais e produção vegetal, e está inserido numa região, que nós queremos explorar ao máximo todas as possibilidades de relacionamento com essa região. É um espaço, que está, na minha perspectiva, muito bem situado. Temos vista para o mar e estamos dentro de uma área agrícola. Portanto, estaremos muito próximo de montanha e estamos muito, muito perto do mar. Terá entre oito a dez quartos. Não é um hotel. É um restaurante com quartos, que serão destinados apenas a quem for jantar no restaurante. A nossa ideia é ter alguns dias de almoço, porque a vista é verdadeiramente magnífica e a viagem, até lá, é bastante bonita. Queremos que seja uma experiência global, desde o momento da reserva até à chegada ao restaurante.

Vão ter, finalmente, uma horta “à mão de semear”.
Não vamos ter só horta. Vamos ter transformação, os nossos próprios produtos. Queremos que o nosso espaço esteja aberto a visitas diárias, queremos estar inseridos na comunidade, queremos fazer parte da vida diária da região, queremos criar sinergias com a própria autarquia. Teremos parcerias com produtores locais. Para mim, sempre fez sentido que não fôssemos tirar lugar aos produtores locais, porque isso seria esgotar a vida e a sustentabilidade dos produtores. Fazer sim, parcerias, trabalhar em conjunto, consumir o que é local, muito! Queremos viver muito o sítio onde estamos e isso queremos transmitir a quem nos visita.


“Assim, surgiu o Projecto Matéria Angola e penso que a nossa primeira incursão em Angola acontecerá lá para Maio”

Por falar em mar, o chef João Rodrigues vai de viagem para outras latitudes, na sequência do desafio apresentado pelo chef Helt Araújo, que desenvolveu um projecto chamado Ovina Yeto.
O dele é um projecto mais lato e ambicioso do que o meu. Quer reavivar toda a questão cultural de Angola, que não se esgota na comida, ou seja, tem uma componente gastronómica, mas quer fazer um mapeamento histórico, de todos os costumes tribais. É um trabalho mais antropológico, mais profundo, no sentido de que é mais abrangente do que o Projecto Matéria, que se centra mais na produção, em determinados produtores e no lado humanista de cada produção. O Ovina Yeto vai ter um programa de combate à fome, estamos a falar de coisas completamente diferentes, a tipologia é completamente diferente. O que o Helt percebeu – já conheço o Helt há muitos anos – é que vê o Projecto Matéria como um aliado em questão de apoio, de orçamentação, da logística, que tem a ver com contactar jornalistas, fotógrafos, tradutores, construção de site. Ele viu aí uma ajuda, e como gosta do projecto, pediu-nos que fôssemos um parceiro integrante, para fazermos lá o que fazemos cá, que é um braço do projecto todo, que acabei de te dizer, e só será uma ramificação o que iremos fazer. Depois há a parte de experimentação, que tem a ver com cozinha, produto, desenvolvimento de ideias, para a utilização desses produtos e de como integrá-los na cultura gastronómica angolana. Assim, surgiu o Projecto Matéria Angola e penso que a nossa primeira incursão em Angola acontecerá lá para Maio. Se tudo correr bem, será a nossa primeira expedição. Estamos a falar de, talvez, três expedições por ano. Não sei se poderá acontecer ou não, porque vamos depender de questões logísticas. A área é gigante e eles não conhecem afincadamente o território. Conhecem as regiões perto de Luanda e será nessas que vamos começar a trabalhar – Huíla, Malange. As mais longínquas já envolvem transporte aéreo, jipes no terreno, guias, tradutores, porque estamos a falar de mais de cem tribos, com diferentes dialectos… Para já, temos um protocolo por dois anos. Vamos fazer o nosso Projecto Matéria Angola, que, para nós, é algo estimulante e desafiante. Portanto, é mais uma coisa a acontecer em 2023.


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© Fotografia: João Pedro Rato

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