A qualidade dos vinhos, a preservação das vinhas velhas e o respeito pelas castas autóctones são realidades inerentes a este território vitivinícola integrado na região Beira Atlântico. Com localização privilegiada no centro do país e uma crescente dinâmica entre produtores, já tem uma confraria própria e há quem defenda a implementação do estatuto de DOP.
Terras de Sicó é o nome da sub-região vitivinícola fundada a 11 de Fevereiro de 1993. Está localizada entre as serras da Lousã e a de Sicó, e pertence à região da Beira Atlântico, no Centro de Portugal. A este território fazem parte os concelhos de Alvaiázere, Ansião, ambas do distrito de Leiria, Condeixa-a-Nova, Penela e Soure, no distrito de Coimbra, bem como as freguesias de Lamas (Miranda do Corvo, distrito de Coimbra), Abiul, Vila Cã, Redinha e Pelariga (Pombal, distrito de Leiria) e Aguda (Figueiró dos Vinhos, distrito de Leiria). Por aqui, os rótulos dos vinhos ostentam a designação IG (Indicação Geográfica) Beiras.
Segundo a Portaria nº 158/93, de 11 de Fevereiro e posteriormente alterado em 2011 pela portaria n.º 238-A/2011 de 16 de Junho, a comercialização dos vinhos rege-se com base em dois factores: só podem ser vendidos após um estágio de seis meses e os rosés devem ser produzidos através de bica aberta (uvas sem pele no processo de vinificação) ou submetidos a uma ligeira curtimenta (o mosto fermenta em contacto com a as uvas inteiras e o engaço, sendo esta a denominação do suporte do cacho).
Mas onde ficam as vinhas das Terras de Sicó? “A maioria das vinhas está sobre o vale”, atesta Alexandre Carril, indicando a planície que se estende desde o sopé dos montes Melo e Gerumelo até à N 347-1, “porque os cabeços são muito agrestes. Só há rochas e carrasco, enquanto no vale o solo é argilocalcário”, esclarece. A enorme mancha de vinha testemunha o que nos diz este enólogo formado na Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD) e representante do Monte Formigão, da Podentes Wines. “A produtora é a minha sogra, Maria Rita Falcão [Ramos]”, afirma com visível orgulho, regressando ao cenário bucólico que está à nossa frente e, de uma assentada, conta a “Lenda dos Ferreiros” de Penela.
“O clima é continental, com temperaturas extremas no Verão. Aqui faz muito calor no Verão e muito frio no Inverno. É um clima muito diferente do clima da região da Bairrada. É um microclima, daí que as datas das vindimas sejam diferentes”, acrescenta Guilherme Martins, com formação em enologia na UTAD e doutorado em Microbiologia e Biotecnologia, a trabalhar no Ministério da Agricultura e da Soberania Alimentar francês, e consultor internacional de enologia.
“Os primeiros vinhos engarrafados certificados são de finais de 1990. Se não me falha a memória, à época foram os vinhos de Monte Formigão, os de Alberto Lapa, de Lapa dos Reis, a Adega do Pombal e Maria Rosa Graça, de Alvaiázere. Os primeiros vinhos certificados de Monte Formigão são de 1999”, informa Alexandre Carril, enquanto somos conduzidos pelas vinhas velhas de Terras de Sicó.
Património vivo com mais de cem anos
As vinhas velhas predominam a paisagem das Terras de Sicó. “Com a [casta tinta] Baga fazem-se vinhos de guarda espectaculares, assim como rosés e espumantes”, avança Alexandre Carril. O Monte Formigão foi o primeiro a fazer espumante a partir desta variedade de uva que prolifera nesta sub-região da Beira Atlântico. Alberto Almeida, produtor da referência vínica Vinha das Penicas, também produz espumante elaborado com uvas vindimadas em vinhas velhas, assim como a Fundação Assistência, Desenvolvimento e Formação Profissional (ADFP) sediada em Miranda do Corvo, ou o produtor Lapa dos Reis, de Penela.
Só em Podentes há vinhas com mais de cem anos, “com castas francesas, que foram plantadas talvez de 1906 ou 1908”, aponta Alexandre Carril. Grand Noir e Semillon são algumas das castas identificadas através de testes efectuados pela Estação Vitivinícola Nacional, com polo localizado em Dois Portos, no concelho de Torres Vedras, onde, entre outras pesquisas, é estudada a genética das castas no país.
Um adro de vinhas
Guilherme Martins nasceu em Vale de Cambra, no distrito de Aveiro, mas quis o destino que fosse parar a Condeixa-a-Nova. A ligação à terra vem da infância, das visitas à avó, em Miranda do Corvo, e do facto do pai, Valdemar Martins, também gostar de agricultura. Durante o curso na UTAD participava nas vindimas em Trás-os-Montes e em Resende, seguindo-se o Douro e Califórnia, nos Estados Unidos, “o admirável mundo novo”, que lhe permitiu juntar dinheiro para comprar um carro. Entretanto, há Angers, outro destino que consta no currículo do enólogo, desta vez no âmbito de ERASMUS concretizado durante o curso.
De mente aberta e conhecimento superlativo, Guilherme Martins regressa periodicamente a Condeixa-a-Nova e, claro, à Quinta do Adro, situada junto à Capela de Santiago, em Podentes, no concelho de Penela. A propriedade, com um hectare de vinha ocupada pelas castas Baga, Tinta Roriz, Touriga Nacional, Arinto e Fernão Pires, foi comprada em 2002. A uva aqui vindimada é vinificada, para a produção do vinho de quinta da família Martins. Chama-se Quinta do Adro e é feito com o pai e a ajuda de Alexandre Carril. O rótulo tem como objectivo “associar a vinificação ao legado romano, que implementou a vinha para alimentar os soldados”, daí o desenho dos mosaicos de dimensão reduzida, feitos a partir de calcário, tão comuns nos pavimentos das ruínas dessa era. O leão representa a força e a coragem que Guilherme Mrtins precisa para continuar este trabalho ligado ao vinho: “às vezes é tão difícil, que tenho de inspirar-me em leões.”
“Não vou plantar mais vinha, porque há aqui vinha que chegue”, afirma com veemência. Em contrapartida, está a ser feito o investimento gradual na adega e na compra de equipamento. Paralelamente, “a quinta é o ponto de encontro para a família e os amigos”, acrescenta. No futuro, quer restaurar a ruína que está na propriedade, para implementar um projecto de turismo rural na Quinta do Adro.
Aposta forte na terra
Com a adega no ponto e os vinhos Monte Formigão a ganharem expressão no mercado, Alexandre Carril fala sobre a possibilidade de converterem duas casas, “na zona de São Domingos, em Podentes”, concelho de Penela, em espaços destinados a actividades de enoturismo. No entanto, já recebem visitantes que querem conhecer os vinhos. O programa inclui uma pequena visita guiada por Podentes, marcada pelo Pelourinho, que representa a elevação desta freguesia a vila, em 1514, pelo Rei D. Manuel I e onde, numa só rua, residem seis produtores de vinho. “Alguns já estão velhotes”, declara Alexandre Carril. Sem esquecer as vinhas.
A vinha do Monte Formigão tem um significado especial. “Foi estreado aqui o primeiro tractor, a 25 de Abril de 1974. Quando os meus sogros chegaram a casa, para almoçar, souberam da Revolução do 25 de Abril”, conta. Trata-se da vinha dos 50 anos, da qual os herbicidas estão totalmente banidos. “É uma agricultura de valor acrescentado e de qualidade. É o futuro”, reforça.
A adega da Podentes Wines, instalada na antiga adega dos sogros de Alexandre Carril, está integrada neste roteiro. A responsável por este espaço é a mulher, Carla Ramos, filha da proprietária das vinhas, Maria Rita Falcão Ramos. Pipas, cubas de inox e depósitos de cimentos fazem parte do equipamento distribuído entre paredes de arenito ou broeira, segundo os locais, “porque se desfaz como a broa”, revela Carla Ramos.
À mesa de Baco
É no Dom Sesnando, montra da carta gastronómica de Coimbra, que nos sentamos à mesa, para falar mais aprofundadamente sobre as Terras de Sicó. Na companhia de pratos da cozinha regional – comprovada por meio das sugestões de chanfana, cabrito assado e javali, a juntar às recomendações culinárias locais confeccionadas por Dona Minda, mãe de Carlos Zuzarte que explora este espaço, com localização privilegiada na vila de Penela, desde Março de 2010 –, o vinho da sub-região em questão é tema de debate. Afinal, este produto “faz parte da identidade de um território, que também deve ser conhecida através da gastronomia”, advoga o restaurador, com formação em engenharia agrónoma e profundo conhecedor do receituário do distrito de Coimbra.
“Foi há cerca de uma década que os produtores de vinho de Terras de Sicó começaram a perceber o potencial da vinha e do vinho desta sub-região”, conta Álvaro Marques Simões, que, há cinco anos, trocou a restauração pela produção dos vinhos Almasim, sem descurar, contudo, o conhecimento inerente ao receituário do país. Em pormenor, enaltece a relevância do Maciço Cársico deste pequeno território vitivinícola, “um maciço em calcário, que contribui para a diferenciação dos vinhos cárcicos”. A somar ao lençol freático abundante, factor que suprime a necessidade de rega na vinha.
Álvaro Marques Simões fala ainda sobre a importância da matéria orgânica em detrimento de produtos sintéticos, dos dias de calor intenso, no Verão, e das noites frias desta época estival, bem como dos três hectares de vinhas que tem em mãos, acrescidos de outros vinhedos da terra, dos quais toma conta.
“O solo calcário, que confere uma excelente acidez aos vinhos, quando conjugado com o lote de castas, dá vinhos únicos”, resume Rui Francisco, engenheiro eletrotécnico, a respeito das características associadas a Terras de Sicó. Microprodutor de vinhos, adjectivo à dimensão de um hectare de vinhas centenárias de Baga, Grand Noir, Rufete, Bastardo, Água-Santa, Fernão Pires, Bical, Cerceal, Rabo-de-Ovelha, Dona Branca, património a preservar. “Para além das não identificadas. No fundo, é o terroir que nos diferencia”, continua Rui Francisco, da Pranto Wines, rótulo que surgiu há dois anos.
A descrição dos vinhos produzidos nesta sub-região da região Beira Atlântico coube a Gonçalo Moura da Costa. O agrónomo e enólogo da ADFP e Presidente da Direcção da Vinisicó, funções acumuladas com a de consultor na Beira Interior e na Região Demarcada dos Vinhos Verdes define-os como “vinhos muito gastronómicos”, indissociabilidade que requer conhecimento em relação às diferenças entre brancos, “equilibrados e com acidez”, e tintos, “mais encorpados, mas não tanto como os do Douro”.
A título de exemplo, Gonçalo Moura da Costa refere os espumantes feitos a partir das castas autóctones da sub-região, que denotam “o requinte da acidez e quem em nada são corriqueiros. Comparativamente com champanhe, são mais ácidos e mais finos”. O final longo, a persistência e a notável capacidade de guarda é transversal às referências vínicas feitas a partir das castas vindimadas em Terras de Sicó.
Turismo e vinho de mãos dadas
“Daqui a dois anos estará o enoturismo a começar a dar frutos”, aponta Guilherme Martins. Para já, a Podente Wines, de Alexandre Carril e Carla Ramos, é procurada por quem quer conhecer as referências vínicas Monte Formigão. Com a antecedência devida (tel. 963 419 729), o casal recebe os visitantes na adega, no n.º 80 da Rua do Paço, em Podentes. À prova podem estar três referências: um espumante, um branco e um tinto. É de salientar que este Verão está reservado à saída do Espumante Monte Formigão Brut Nature 2019. O azeite da casa também faz parte deste momento, assim como opão feito em forno a lenha, por uma senhora da terra. Fazer um piquenique na vinha é outra das sugestões de ambos. “Levam uma cesta de piquenique, com uma garrafa de vinho, queijo, doce caseiro e mel. Tudo produtos regionais e uma manta.”
Prova de vinhos é acção possível com Rui Francisco, da Pranto Wines (tel. 930 593 899). “Só tem de ser tudo combinado com antecedência”, adverte. A mesma informação é dada por Álvaro Marques Simões, que pratica enoturismo “de uma maneira empírica”. Recebe até 30 pessoas, para fazerem provas de vinhos no n.º 9 da Rua Fonte Nova, em Podentes. Basta reservar com três dias de antecedência (tel. 919 929 725), para preparar o que for necessário e de acordo com o combinado.
A visita às vinhas e à adega conjugam-se com o trabalho posto em prática na ADFP. Gonçalo Moura da Costa refere a adega localizada na zona industrial de Miranda do Corvo (tel. 269 530 150) e dois alojamentos pertencentes à fundação: o Conímbriga Hotel do Paço, em Condeixa-a-Nova, e o Hotel Parque Serra da Lousã, em Miranda do Corvo.
Para quando a região Terras de Sicó?
Com o propósito de reforçar o reconhecimento desta sub-região integrada na região Beira Atlântico, foi constituída a Confraria dos Vinhos das Terras de Sicó. O Grão-Mestre é Raul Costa. Formado em psicologia e docente da Universidade Lusíada de Lisboa, manifesta grande preocupação com o futuro da sub-região Terras de Sicó, onde possui um hectare de vinha: “daqui a 15 anos, os filhos não vão continuar o trabalho dos pais. A memória dos antepassados deveria manter-se.” Apesar de ainda não estar formalizada, a Confraria dos Vinhos de Sicó reúne 21 elementos, maioritariamente dos concelho de Miranda do Corvo, Condeixa-a-Nova, Penela, Alvaiázere, Figueiró dos Vinhos, Soure e Ansião.
No âmbito desta recente boa nova relacionada com a Confraria dos Vinhos de Sicó, serão entronizados os confrades este domingo, dia 30 de Junho, no Centro da Cultura e do Vinho das Terras de Sicó, em Podentes, no concelho de Penela. A cerimónia tem lugar durante a realização da 14.ª edição da Vinália, evento dedicado ao legado vitivinícola e aos demais produtos endógenos da região, que decorre nos dias 29 e 30 de Junho.
O objectivo da Confraria dos Vinhos das Terras de Sicó? “Precisamos de ser conhecidos”, enaltece Raul Costa. Guilherme Martins afirma: “enquanto os nossos vinhos não forem DOP, não saímos da cepa torta.” Gonçalo Moura da Costa defende que “seria interessante que deixasse de ser uma sub-região e passasse a ser uma região”.