Victor Torpedo e Tito Santana. Duas figuras bem conhecidas da cidade de Coimbra e, Victor Torpedo, um nome que vai até aos antípodas com a sua música. Juntos traçaram e projectaram um Festival que, na primeira edição, levou a palco: Robert Görl & Daf, The Undertones, The Speedways, John Cale & Band, Oh! Gunquit, The Black Lips, Finale, Buzzcocks, La Élite, Hickoids, La Femme, The Phobics, The Parkinsons, The Damned, The Fleshtones, The Star Spangles, 5ª Punkada, Eel Men, Dissidenten, Martin Dupont, A Certain Ratio, The Rezillos. Não resistimos, enumerámos todos.
Agora, com uma garra e resistência de louvar, preparam-se para a segunda edição do Luna Fest com um cartaz de arrepiar. A propósito desta nova jornada lunática, fomos desafiados a ter um tête-a-tête com este dois cabecilhas de um festival que se espera que perdure e se repita, ad infinitum. Duas horas e dois minutos de conversa deixaram-nos no papel ingrato de vos privar de tantas e suculentas histórias destes dois lunáticos incontornáveis. Victor Torpedo (VT) músico (The Parkinsons, Tédio Boys, Tiguana Bibles, Victor Torpedo & The Pop Kids) e artista plástico, e Tito Santanta (TS) que não gosta do título, mas é o Sr. Empresário do Pinga Amor (Bar obrigatório, em Coimbra) e também artista plástico (nas horas vagas). Quem sabe um dia um Director’s Cut da conversa, mas para já, com cortes, o deslindar deste Luna Fest que veio para ficar, temos a certeza.
Primeiro, cremos ser o óbvio, explicar a escolha do nome. Sendo que Fest é imediatamente entendido, porquê Luna?
VT: Há uma data de coisas que me vêm logo à cabeça, quando me lembro do porquê do nome. Duas delas são a música “MezzaLuna” – do Adriano Celentano – que durante uma fase ouvi vezes sem conta – e o imaginário imediato que desperta a palavra luna. Queríamos tornar este festival algo de especial e espacial. Esta ideia foi completada e consolidada, pelos dois, porque no Pinga Amor, na casa-de-banho masculina, há uma série de cartazes afixados e um em especial com uma astronauta. Achámos que a astronauta era fantástica, saída dos anos 1960, tanto que foi o primeiro símbolo que utilizámos, no cartaz do ano passado. Tudo junto com a ideia de ser fora da caixa, com a cena do lunático, era perfeito o nome luna. Poderíamos fazer uma série de analogias para justificar o nome, mas a de ser algo lunático é o perfeito.
Quando é que começou a ser esgalhada a ideia de um Festival de rock’n’roll, em Coimbra? Urgia elevar a cidade, culturalmente, com um festival a par de um Vilar de Mouros?
TS: Ires buscar Vilar de Mouros é perfeito, é essa sempre a comparação que fazemos. Temos esse cuidado e a Luciana, que está connosco na produção, é de Caminha – onde se realiza o V.A. -, o que nos dá a ideia real de como o festival deles se montou.
Antes de avançar na resposta, nota que não vamos querer puxar para nós os louros de termos sido os primeiros a ter esta ideia para Coimbra. Nós colocámos em prática o que a cidade já clamava há anos. A cidade tinha uma falha grave ao nível de um grande Festival. A própria Câmara Municipal de Coimbra (C.M.C.) há muito que devia ter um Festival e aproveitar ainda mais aquele espaço, no coração da cidade. Há 20 anos que ouço dizer: “Porque é que os outros têm e nós não?…” Nós já tivemos com a Queima das Fitas que, entretanto, mudou o modus operandi – a Queima tinha sempre um cartaz com muito rock e eclético, e foi deixando de o ter. Basta dizer que o Iggy Pop passou pela Queima e está tudo dito.
Agora, a tua resposta. Durante a pandemia, eu e o Vitinho (VT) tivemos uma vida super ativa. O Pinga Amor esteve fechado vários meses, então, era de manhã até à noite, metidos no Bar fechado a construir coisas. Foram tantas horas juntos que passámos de uma grande amizade para uma irmandade. Pelo meio, íamos falando sobre as políticas da cidade, do que se passava cá e lá fora no universo das artes, eu mais nas artes plásticas e ele nas musicais, e começou a ficar no ar o “temos de dar a volta a esta coisa”.
Um dito dia, fomos ajudar o Pedro Seixas a fazer o Festival M (Festival Torres do Mondego, Coimbra) e o Pedro disse que gostava de crescer, mas tendo o cartaz mais sujeito à vontade da autarquia, não podia ter um alinhamento mais freak. Sabendo disto, demos dois murros na mesa, numa atitude que mais Punk não há, e dissemos “Vamos fazer um festival!”. Não sabíamos como, mas íamos fazer e meio a brincar em duas horas fomos tentar contactar a C.M.C., ligámos ao João Francisco Campos – Presidente da União de Freguesias de Coimbra… e partir daí é até hoje. Nunca mais houve um dia de descanso. Mas agora também tenho de dizer, não foi e não é fácil. Tens uma cidade que dizia que era preciso um evento destes, aparece o Tito e o Vitinho – e todo o gangue que nos quis empurrar para a frente – e de seguida levas com a outra fação – a dos Velhos do Mondego – que começaram a colocar entraves; é que ninguém imagina o que aconteceu nos bastidores do construir de todo deste festival!
Acham que passa também por encontrarem um Mecenas, como Bancos em alguns festivais?
TS: Temos uma opinião muito própria sobre isso. Se conseguirmos ser financeiramente independentes, vamos ser sempre. Ainda que seja muito importante ter dinheiro e este ano já conseguimos consolidar uma série de apoios com instituições, há aqui outro fator. É muito fixe ter lá o nome de um banco/ ou operadora móvel, nada contra, mas depois sabes o que é que acontece. Tens ideias impostas por quem te patrocina. Se conseguirmos consolidar este segundo ano, ninguém nos pára. Estamos a fazer um enorme esforço a pagar todas as nossas contas e chegamos à segunda edição sem um processo de execução em tribunal.
“Find people who think like you and stick with them. Make only music you are passionate about. Work only with people you like and trust. Don’t sign anything.” Steve Albini.
A vossa união Luna(tica) só podia ser entre vós os dois? Concordam com o que diz Albini?
VT: Sem dúvida alguma!
TS: O Albini, tem toda a razão e sim, só podíamos ser nós os dois. Discutimos muito, eu adoro discutir e adoro não ter razão. É da confrontação que nascem as melhores ideias. É assim que aprendemos. Tínhamos os dois a ideia de fazer uma coisa diferente e temos pontos em comum: a forma como vemos a vida e o universo estético. Creio que a nossa união se resume na irreverência do Pinga Amor, na sua excentricidade que causou algum sururu na cidade e da qual o Vitinho – na altura das “queixas” – me diz: “Maravilhoso!”. A pandemia uniu-nos muito, pintámos e discutimos tanto. O Vitinho é a minha “pessoa-chave”. Depois há também o equilíbrio da nossa união. O Vitinho é a estrutura artística e eu a empresarial; isto é muito importante para a forma como estruturamos o Luna. Somos muito parecidos na parte criativa, mas sabemos muito bem separar as águas e delegar. A segurança e confiança, um no outro, é que também nos fez arriscar. Ninguém metia a cabeça no cepo como nós metemos.
Foram ambiciosos. Colocaram a bitola bem alta. Apaixonados pela cultura e, principalmente, pela música. Para se lançar um Festival desta dimensão é imprescindível o apoio camarário?
TS: Completamente! Sem eles não é possível criar um evento desta envergadura. Começando logo por toda a logística do recinto ser camarária. Creio que as pessoas ficaram com uma ideia errada da C.M.C. em relação ao Luna; não foi tão má para nós como se pensa. Fizeram o que puderam e foram inteligentes, eu teria feito a mesma coisa! Basicamente, fizeram a leitura: “Punk nesta cidade?! Vamos fazer punk, aqui?” e a minha resposta foi “E porque não punk em Coimbra? Faz todo o sentido!”. Assim, tivemos um “Meus senhores, só vos podemos dar isto. Já fechámos orçamentos.” – tinham toda a razão – “Damos o espaço e vocês façam a vossa parte. Se correr bem, para o ano estamos cá e falamos.”, foi um bocado Pôncio Pilatos. E não é que correu bem?
A C.M.C. tinha/ tem noção de tudo o que a cidade tem em si mesma para oferecer a nível musical?
VT: Não, de todo.
TS: Não. A cidade, no geral, ainda não sabe reconhecer as suas gentes, só quando aparece um epitáfio num obituário do jornal ou temos de ir a Lisboa (ou lá fora) ganhar um prémio – e tem de ser o prémio certo, ou ir a Cannes como o grande António Ferreira. Todavia, atenção que o Presidente da C.M.C. é uma pessoa com gosto pela cultura, que se interessa. É ele que suporta o nosso festival e entende que o Festival pode ser uma mais valia para a cidade. Mas não só a C.M.C.. Fugindo um pouco à pergunta, este ano é a primeira vez que vejo um evento desta categoria a ter a Comissão Organizadora da Queima das Fitas, pela mão do Carlos Míssel, na sua organização, no caso connosco; a Reitoria da Universidade de Coimbra, que nos dá um apoio brutal e nós vamos dar um apoio em bilhetes aos bolseiros; o SASUC que dar-nos-á apoio com a comida e a C.M.C. com produção, claro. E mais do que fazermos rock’n’roll, queremos criar pontes e já criámos algumas. A título de exemplo, eu conheço a Previdência Portuguesa e o Vitinho a A.P.C.C., cada um foi buscar o apoio, e de repente dizem ambas: “Nós gostávamos de falar entre instituições”. As próprias instituições precisam de protocolar coisas entre elas e muitas ainda não conseguem.
Além do Município de Coimbra, que mais parceiros trouxeram para o regaço para vos ajudar a tornar este sonho real?
VT: Os meus pais. (Risos).
TS: E o empréstimo ao Banco! Foi uma travessia do deserto. Não podemos ser mais francos. Tirando, claro, a C.M.C. e os acima ditos: completamente sós. Aí é que aprendemos uma lição: ficas a saber com quem contar, de verdade. Obviamente, não é assim tão sozinhos, no núcleo da organização temos mais três ou quatro pessoas que são pilares, um deles a Luciana que está connosco no Festival, sem esperar nada em troca, e no Pinga Amor, ela deu tudo no ano passado, tudo. Também tivemos amigos que deram uma ajuda de ouro durante o Festival, mas apoio substancial para ajudar mais um pouco, nada. Foi uma experiência muito dura, física e emocional, tivemos à beira do burnout, só queríamos sumir de cansaço no final. Fizeram-nos coisas de tal ordem, mas que não devem ser contadas neste momento, talvez no futuro quando tivermos outro arcabouço e outra estabilidade financeira, e não estivermos tão fragilizados, contarei nas minhas memórias de como isto tudo se estruturou e as pessoas até vão dizer “como é que vocês aguentaram!”.
VT: O problema de criares um evento destes é sempre um: financeiro. Se não fosse o dinheiro este ano já estávamos completamente na boa. E o ano passado teria sido ainda maior.
TS:: Nem vamos falar do primeiro cartaz que começámos a traçar para apresentar à C.M.C.. Nomes como Iggy Pop, Brian Eno, Blondie. (Risos).
“It always offended me when I was in the studio and the engineer or the assumed producer for the session would start bossing the band around. That always seemed like a horrible insult to me.” Steve Albini.
Os vossos parceiros dão-vos a liberdade que Albini tinha como sagrada ou também vos dão dicas, havendo trocas de ideias?
VT: Tivemos liberdade total e não tivemos de fazer cedências. O que há sempre é muita gente a mandar bitaites. No ano passado servimos uma refeição musical do caraças, o cartaz é reflexo disso, e mesmo assim, o que é de uma imbecilidade gigante que me deixa furioso, ouvimos o clássico “Porque é que não trouxeste X e Y? Ou W e Z?” É uma cena muito portuguesa, nunca estamos satisfeitos. Quase nunca há apenas e só o elogio sincero.
TS: Exato! Cheguei a dizer ao Vitinho que, se eventualmente não conseguíssemos fazer a segunda edição, não nos ia pagar as contas, mas caímos com estrondo, lembrados pela maior loucura por cá: “estes gajos são completamente marados”, no bom sentido. Mas sim, liberdade total.
Uma primeira edição de algo deste patamar, acreditamos que seja sempre um imensurável “leap of faith”, com algumas amarguras, críticas menos boas – próprio de quem arrisca -, mas também com bons momentos e feedbacks que vos deram o alento necessário para estarmos este ano à conversa em torno do Luna Fest. Do mau e do bom, algo aconteceu que vos fez mais rijos para já terem a 2.ª Edição prestes a acontecer. Até porque, e agarrando numa frase da Kim Gordon “For me performing has a lot to do with being fearless.”. a resiliência e persistência parece que é algo que vos é natural.
Que balanço tiram, numa análise autocrítica, à 1.ª Edição? Acreditando que com os erros aprendemos e melhoramos.
TS: No meu caso, achava que sabia muito até fazer este festival. Enriqueceu-me de sobremaneira, tornei-me muito mais empresário, mais homem de negócios. Obrigou-me a voltar a escrever formal, a aprender a controlar-me melhor, a falar bem, a ficar intelectualmente muito ativo, e tudo o que correu mal, aproveitei tudo para meu benefício. Por exemplo, fiz a dada altura um email de resposta ao Banco que não me correu nada bem. No email seguinte já tinha a resposta a todas as perguntas, sem espinhas, prontinha. Aprendi. Quando a primeira edição acabou e me perguntaram “como é que tu estás?” na minha cabeça soou um comentário que fiz nas redes sociais sobre o quanto arriscámos: “meu amigo, levares um estoiro aos 20 não é o mesmo que levares um estoiro aos 40”. Foi muito duro, para os dois, embora eu já tivesse passado por situações semelhantes, salvo seja. O Vitinho é músico e artista, não empresário e por isso creio que talvez tenha sido mais duro para ele. No meu lado adorei, no caso dele ele falará. Houve coisas más e houve coisas boas, mas no todo, para mim, foi maravilhoso, é maravilhoso e estou em pulgas com esta edição. Estou a trabalhar nesta edição e, em paralelo, estou já a trabalhar na de 2025. Que isto ninguém sonha em ganhar um milhão de euros a achar que vai ser fácil, (risos).
VT: Foi fabuloso. Temos total noção dos erros que fizemos que, como dizes, nos fizeram aprender. E o erro nem foi tão importante porque vendo bem tivemos cá um paio… Se tu estivesses lá duas horas antes de abrir as portas e visses o nosso backstage o pessoal todo louco a trabalhar que não sabia o que estava a fazer, tu dizias “isto… à primeira banda acabou!” Depois, passas para o cenário em que vês o Augusto Cardoso (Tiguana Bibles, Bunnyranch, Subway Riders) a servir malta no backstage, o Pedro Chau (The Parkinsons, Tédio Boys, Ghost Hunt, Subway Riders) vestido de cozinheiro, o Carlos Dias (Wipeout Beat, Subway Riders) a controlar o backstage, a Tracy Vandal (Tiguana Bibles, a Jigsaw, John Mercy) lavar pratos…. Vês tudo isto e pensas: “Alto! Isto está tudo a funcionar sem a malta comunicar!” Uma loucura que funcionou e o mais gratificante, e isto é importantíssimo, é a grande demonstração de que quando se quer fazer, faz-se. E vais ouvir sempre o “não te metas nisso que não consegues fazer; só X e Y é que sabem fazer.” É muito doloroso e claro que houve ali coisas muito negativas, erros crassos, mas no final de tudo: fabulosa, a edição de estreia. E não esquecer que ganhámos o Prémio Coimbrinha do Ano, o Prémio Tatonas! Este ninguém nos tira!
Os primeiros passos destes grandes eventos passam, também, muito por sangue, suor e lágrimas e ajuda dos mais próximos? Conseguiram usufruir alguma coisa?
TS: Sim, com muito voluntariado, muita ajuda, e atenção, voluntariado foi da nossa malta amiga, que deu sem esperar receber de volta. Eu adorava ter sido público no Luna é o problema de seres organização…
VT: Até a minha irmã se ofereceu para ajudar e aquilo não é de todo o mundo dela, e a minha prima que é um bicho do mato. O meu filho, que é um caladão, esteve na bilheteira e adorou (e acho que este ano vai de novo). E sim, não usufruis quase nada, não consegues. Sempre a trabalhar non stop.
TS: No ano passado, quase não dormíamos, passei as noites no recinto, cheguei a um estado de exaustão que este ano já vou evitar. Quando acabou saí de lá e chorei de nervos, fomos ao limite, mas passou, a vida segue. Há uma coisa importante, mais uma lição. Às vezes mais vale pagar e é aqui que o dinheiro é maravilhoso. A malta paga, porque não podes mesmo querer fazer tudo, e se não fizerem um bom trabalho para o ano procuras outro… o voluntariado (contratado) é giro, mas depois tens o “eu não quero fazer, pois quero ir ver aquela banda”… há aqueles que querem é aparecer na foto e os outros que querem é andar de credencial lá dentro. Um pouco ainda no seguimento da resposta anterior, houve pessoas que nos desiludiram, a sua atitude, isso foi o que correu mal. Pessoas ligadas a nós que disseram coisas menos bonitas a nosso respeito. Porém, os mesmos que diziam mal, agora já querem saber tudo e andam a matutar “o que é que vem dali daqueles dois”. Este ano estou muito expectante até porque estamos com muito mais venda de bilheteira. Mas é confortável alguém ligar a dizer para não ter medo, como o Veloso da Previdência (que também está na C.M.C.): “estás tão embrenhado no que andas a fazer que nem reparas, esquece quem te diz aquilo e aqueloutro, o vosso trabalho é magnífico. Há muita gente atenta ao que vocês estão a fazer, há outros olhos que vêem para além dos vossos”. Disse para mim mesmo que são estas as palavras que eu quero guardar, eu escolho aquilo que quero ouvir! É tudo tão efémero, só quero que fiquem com uma boa imagem do nosso trabalho e saber que realmente eu fiz as coisas bem.
Como sentem que a cidade, as suas gentes, vos olhou? A pergunta advém de nem sempre, quando saímos dos grandes centros urbanos como Lisboa ou Porto, ser fácil conquistar os habitantes do lugar pois ora são mais complexos, ora mais desconfiados, ora mais elitistas…
TS: No geral, creio que toda a gente achou que ia ser uma grande… porcaria!! (Risos). Mas chatice, o público adorou. (Risos). Se há más surpresas com aqueles que mais contávamos, o maior feedback que temos é de pessoas que não tinham nada a ver com a nossa cena e que respeitam imenso o nosso trabalho. Há muitos que nos conhecem, mas não lidam connosco todos os dias. Ainda no outro dia, um amigo meu que é um beto à maneira me disse: “Já comprei bilhete para o Luna Fest! Nem é muito a minha cena, mas Coimbra estava a precisar disto.” Alinhando mais na tua pergunta, acredito que daqui a uns anos, com o evento consolidado, vamos ter mais esse efeito de buscar maior diversidade de público. Como disse o Presidente da C.M.C. “Este evento pode ser um grande dinamizador.”
Contra factos não há argumentos. Conseguiram chegar além-fronteiras e trazer público internacional a Coimbra, que veio propositadamente para o LUNA. Era também este um objectivo traçado na génese do Festival?
VT: A nossa ideia é tornar Coimbra um marco no panorama dos festivais de cá e não só.
TS: É um dos nossos grandes objectivos. Nós tivemos várias nacionalidades a vir ao festival, metade da bilheteira era de fora do país. A Bol dá-nos esse feedback. Isto nunca foi, nem pode ser pensado como um Festival só para a cidade. Nós quase fomos ressuscitar a Queima que trazia os melhores nomes nacionais e internacionais do rock. Acredito que não é à toa que Paredes de Coura começou com alguém que andou cá a estudar, no seu tempo. Se a Queima ainda fosse o que era há uns anos nós não podíamos fazer um Luna FEST, era competição.
Segunda edição. Mesmo spot. Dois palcos. Um principal e um, não de somenos que o principal, o Lux Records do “mecenas” Rui Ferreira. Como nasce este palco?
VT: Se há um mecenas na cidade, esse mecenas é o Rui Ferreira.
TS: E que não deixa de ser um mecenas para o Festival. Basta recordar que, e ainda no rescaldo da primeira edição, ele acreditou logo que íamos fazer a segunda edição e saiu-se com esta: “Tenho estas bandas portuguesas e quero entrar convosco”. Lembro-me de lhe dizer que ainda nem nos tinha perguntado se íamos fazer nova edição e já se estava a mandar para a frente (risos) levei com um “Eu sei que vão levar isto para a frente e esta é a minha proposta!” Foi de livre e espontânea vontade que se ofereceu para também meter a cabeça no cepo. Tivemos inclusive, há uns tempos, um comentário no Facebook a agradecer a mim e ao Vitinho este trazer das bandas portuguesas, mas fui lá dizer que agradecia profundamente como produção, porém: “O seu a seu dono, os louvores hoje a este comentário são todos para o Rui Ferreira”. A curadoria foi toda e exclusivamente dele, e faz todo o sentido. “Quem é que grava tanta malta? Quem é que edita?“
Era importante esta oportunidade para as bandas mais alternativas nacionais terem, aqui, um momento de projeção? Mesmo as que já têm um nome bem marcado.
TS: O primeiro ano, foi uma decisão nossa não ter bandas portuguesas, foi um marcar de posição, de não querer bandas portuguesas e atenção que os The Parkinsons são músicos portugueses, mas a formação da banda é em Inglaterra.
VT: A Lux e o Rui têm toda a lógica, até pela ideia que ele sempre teve do [Festival] Lux Interior. O Lux Interior, por mim, pode ter no Luna um trampolim ou uma casa. Há bandas que não faz sentido tocarem numa sala demasiado grande porque perdem imenso, já tivemos a experiência disso; por exemplo, uns Twist Connection no Convento não têm a força que têm num ambiente assim, com maior feedback e proximidade do público – deixa os músicos desconfortáveis, acho eu; este ambiente é um ecossistema mais lógico para algumas das bandas com quem ele trabalha.
TS: E há bandas que, não sendo de Coimbra, fazem todo o sentido porque, por exemplo, já passaram som no Pinga Amor, como os Club Makumba. O Tó Trips que o Vitinho o conseguiu meter a tocar no bar, um sonho meu.
VT: Convém reforçar, o Rui teve total liberdade porque não queríamos mesmo ser nós a fazer a curadoria. É só a mão do Rui.
TS: E mesmo assim tantos problemas que tivemos com o palco Lux. Bandas do Rui, nossos amigos, chateados connosco porque nós não os metemos lá e eu a tentar explicar, “Meus senhores, a curadoria é da Lux Records!” O Rui é um escudo protector. O nosso palco é o internacional. Esperamos para o ano continuar com o Rui e ainda em melhor formato se puder ser. Até o Rui teve de se explicar “este ano não vos meto a vocês, mas quem sabe para o ano…” (risos). Isto porque na nossa cabeça o festival vai eternizar-se.
The Legendary Tigerman, Club Makumba, Selma Uamusse, Belle Chase Hotel, Twist Connection, M’as Foice, Birds Are Indie e So DeaD – Palco Lux Records.
Kid Congo and The Pink Monkey Birds (US), The Psychedelic Furs (UK), Johnny Throttle (UK), Carrion Kids (MX), DEADLETTER (UK), LA ÉLITE (ES), Theatre of Hate (UK), The Gories (US), Lene Lovich (US), Jon Spencer Blues Explosion (US), Weird Omen (FR), Natty Bo and The Top Cats (UK), The Parkinsons (UK) – Palco Luna.
Cartaz nada ambicioso. Não baixaram a bitola e tiram-nos o fôlego.
Passaram de quatro para três dias de festival. Sentiram que quatro era demasiado exaustivo para todos e até a nível de gestão menos sereno?
VT: Cinco dias!
TS: Exato, cinco dias! Isso foi outro amargo de boca que tivemos. Eram para ser só três, mas os DEVO trocaram-nos as voltas e foi uma enorme confusão. Uma das coisas que fizemos mal no ano passado foi criar evento todo à volta dos DEVO, foi completamente errado, mais uma lição que aprendemos. Houve uma altura em que os DEVO puseram a hipótese de, já que não podiam vir no fim-de-semana, virem na quarta-feira e o Vitinho diz: “Fazemos cinco dias?” Eu naquela de já estar lá o material todo: “Olha, bora lá!”… Criámos uma grande expectativa, elevámos muito a fasquia e depois eles caem.
VT: Foi um mês e tal a dar a volta à C.M.C. para fazer esta extensão e quando conseguimos os DEVO marcam Berlim na quinta-feira. E foi-se. Felizmente, o John Cale veio logo no primeiro dia, foi uma sorte dos diabos que pensávamos que não íamos conseguir.
TS: Cinco dias é demais em todos os aspetos, até para a tua sanidade mental. Como dissemos, o que sempre quisemos foram três dias. É o ideal.
Na surdina ouvimos que, na 1.ª edição, conseguiram algo incrível. As bandas acabavam por se misturar com o público para assistir aos comparsas do crime a tocarem, tornando o ambiente único, sem espaço para elites intocáveis. Verdade?
TS: Isso é um reflexo do que eu e o Vitinho somos. Vou usar o Pinga Amor (o nosso ninho) para se entender bem o porquê disso. O Pinga Amor não aceita classes, não há cá uns mais importantes que outros. Não aceito isso! O Pinga Amor – com a sua decoração provocadora – é o meu grito para nunca mais te deixares ir abaixo por não teres um canudo ou não seres da família tal e teres um emprego vip. Há uma coisa na qual não cedemos: ninguém, seja qual for a raça, religião, formação, pode fazer qualquer tipo de comentário menos próprio ou de soberba.
Somos todos iguais. O Presidente da C.M.C. vai ao Luna e mistura-se com o público. Não há maior liberdade no pensamento da música que esta de no Luna todos são vips, todos bem-vindos para desfrutar. Ponham-se à vontade! Claro que tem de haver o backstage dos artistas, organização, imprensa, etc., (mas é backstage, não é área vip para ver concertos). Esse ambiente de que falas, foram até os próprios músicos que o criaram. O John Cale dizia que há anos que não sentia o espírito rock’n’roll como no Luna Fest. Tivemos os Gang of Four, Black Lips tudo junto a conversar com a malta que sabe uns dos outros, mas que nunca têm tempo para estar.
VT: Por exemplo, no catering, comia e vai comer tudo junto, da segurança ao músico, da organização à imprensa, técnicos, tudo junto. E as bandas estavam todas super contentes e satisfeitas, tudo na conversa, adorei uma cena que foi a chegada dos a Certain Ratio que em vez de irem para o hotel foram logo para o recinto na primeira noite e na segunda noite também fizeram por aproveitar o festival.
TS: Foi um autêntico convívio musical entre o público e artistas, foi maravilhoso.
VT: E em todos houve um elo particular, todos queriam ver o John Cale.
TS: Outra coisa, metade das bandas não foi embora. Houve bandas que ficaram os cinco dias e estavam lá sempre caídos. Até brincávamos “Então ainda aqui andam, com a mesma roupa?” (risos).
Como conseguem trazer estas bandas todas e criar o ambiente sonoro singular?
TS: Creio que é mesmo o espírito do rock’n’roll a falar e o não querermos baixar a bitola. Todavia, aqui os méritos são todos para o Vitinho e há uma coisa ainda mais importante no cartaz que é a organização por dias das bandas que vêm. Só o Vitinho para fazer essa parte, cada um com as suas tarefas, mais uma vez. Cria estéticas musicais por dias e há ainda outra coisa que as pessoas não vêem. O Vitinho quer bandas que se provoquem em palco, que puxem umas pelas outras e eu percebo-o totalmente. Imagina isto: “Ai vocês deram um concertozaço, então esperem lá que nós vamos também rebentar com isto tudo!!”. É isto que estimula, que espicaça.
VT: Isto aconteceu com as bandas todas no ano passado. Uma provocação, picardia saudável e mesmo a escolha das bandas mais antigas, elas estão todas em alta e a tocar de caraças. Por exemplo, LA Elite é novamente a provocação no Luna. Aliás, é a única repetição porque eles em palco são absolutamente surreais. Despedaçam, até arrepia!
E o Rui Ferreira dá a tal cama ao festival que vos ajuda q.b., não?
TS: Verdadíssima. E ajuda-nos muito. Forrou-nos o Festival.
Para quem for a esta 2.ª edição, que poderá encontrar além de dois palcos e música de refinada qualidade?
TS: Para começar, a nossa área de comidas e bebidas, este ano, vai ser muito mais confortável. A zona da beira-rio vai ser toda de restauração. Olha, buscando o exemplo de Vilar de Mouros, queremos permitir que as pessoas possam estar sentadas sem perderem o concerto, por várias razões. Seja pelo cansaço, por irem com os miúdos, o que seja, queremos que haja um grande conforto em termos de restauração. Também vamos ter uma zona de exposições, mais bem montada que no ano passado (sempre a aprender e a ouvirmos quem sabe mais!), com tatuagem, merch, arte, no ano passado tivemos um barbeiro!… Porque imagina que vai tocar uma banda, mas que tu nem queres ouvir muito, eu quero que tenhas distração. Adorávamos ter um espaço mega para as crianças porque no ano passado tivemos muito malta a levar crianças, mas ainda não será desta. No ano passado, o Club Motard de Coimbra montou-nos lá os carros e as motas, um stand pequenino, e este ano vamos falar com eles, de novo. Num resumo, a ideia é estares na zona da restauração e tens tudo sem presunções, acabaste de comer e ainda não me apetece ir ouvir um concerto, então vais dar uma voltinha. Lembro-me de uma conversa que tive com a Directora de Marketing da Critical Software e ela disse uma frase importantíssima “cria experiências às pessoas” e tem toda a razão.
Queremos, assim de uma forma leviana, uma Feira Popular do Rock’n’Roll (risos). Queremos que saiam todos sujos de pó, curtam um bocado e depois logo lidam com o cansaço.
Sonhos e desejos (e ambições) para o vosso Luna?
TS: De maneira franca e direta e sem floreados: pagar as dívidas.
VT: É o maior sonho! E que seja um sucesso e que a cidade usufrua verdadeiramente.
TS: Um outro sonho meu que persiste é ver num jornal, em letras gordas, que as pessoas ficaram rendidas ao nosso festival – porque isso quer dizer que fizemos a coisa bem feita. Sabes que é a primeira vez que me vejo a fazer algo a longo prazo. Ah! E não podemos esquecer de referir as ramificações que o Luna já tem como o NEREIDA, no Jardim da Sereia e, como tínhamos algum dinheiro – lá está a diferença de fazeres com algum ou sem –, vamos ter um exposição do Pedro Medeiros, na Previdência Portuguesa; vai ser espetacular, vamos ter vários concertos e inclusive um ar livre com o Salão Brazil, cá fora, e outras actividades culturais; tem tudo para ser um evento que se prolonga com apontamentos ao longo de alguns meses. Estamos cheios de sonhos com o Luna e queremos muito concretizá-los. Por fim, dar corpo ao nosso sonho filantrópico. Se o Luna crescer bem e saudável, gostávamos de vir a albergar – com um atelier/estúdio – gente criativa que deixou de criar, por não ter onde se agarrar. Creio que somos uns privilegiados, estamos cheios de vida. As dívidas tiram-nos o sono, mas ter uma sede/estúdio era lindo. Vejo-nos como uma missão de resgate. Queremos fazer crescer a região e criar oportunidades aqui porque a cidade ainda é, em parte, marasmo; fazer o dinheiro ficar por cá, ter os serviços necessários cá. Não somos comerciais e não queremos ganhar logo tudo, é o trabalho “formiguinha”. Dá mais trabalho, mas tem essência.
Escusado será dizer que é absolutamente obrigatório colocar este Luna Fest na sua agenda cultural e que rumar a Coimbra se torna imperativo nos dias 06, 07 e 08 de setembro para levar com uma imersão lunática, abençoada pelas águas do Mondego, de música de refinada qualidade.
Paralelamente, há toda uma programação Luna Fest que começa já do dia 30 de agosto até ao mês de outubro com cinema, dj sets, concertos, exposições de arte e performances teatrais. Saiba tudo aqui: Cenários Lunares – Programação.
Sejam lunáticos e abracem o verdadeiro espírito rock’n’roll, em setembro, em Coimbra! •