Chef Hélder Martins: “Sou criativo por natureza, não consigo fazer coisas tão tradicionais”

Hélder Martins cresceu em Águas de Moura, localizada entre Setúbal e Alcácer do Sal, “uma terra de arrozais, de quintas, de ganadarias”. Aos 17 anos rumou ao Algarve, onde se licenciou em Engenharia Alimentar, seguindo-se o curso de Gestão e Produção de Cozinha, terminado em 2000, na Escola Superior de Hotelaria e Turismo do Estoril. Cedo percebeu que o trabalho desenvolvido enquanto estudante desta área se encaixava na alta cozinha. 

Esta vontade de voar alto levou o chef português a ingressar na equipa do The Fat Duck, em Berkshire, Inglaterra, do Arzak, em Donostia, Espanha, e da L’Écola Alain Ducasse, em Paris, França. Em Portugal, trabalhou ao lado dos chefs Vítor Sobral e Luís Baena, fez a abertura de alguns hotéis e formações até surgir a oportunidade de ir para o histórico restaurante Tavares Rico, em Lisboa.

Mouna Yaqoubi está há dois anos em Portugal. Apaixonou-se pelo nosso país em setembro de 2022. Como queria sair de Marrocos, onde tem uma agência de comunicação, decidiu mudar-se para Lisboa, em 2023, com as filhas Zeyna e Aya Bennani. Em 2025, concretizou o sonho de abrir o Arady, restaurante localizado entre Campolide e as Amoreiras, na capital portuguesa, com Carlos Fernandes, chefe de sala, e Hélder Martins. Leia a entrevista ao chef e a Mouna Yaqoubi, ao som de música marroquina, de preferência, na nova esplanada deste lugar de bem comer.

Viajou muito? Conheceu muitas culturas gastronómicas?
Hélder Martins: Sim. Gosto de comer e viajar. Viajei para o sudoeste asiático, pela Europa, pela América do sul e do norte. Curiosamente, uns anos antes de falar com a Muna [Yaqoubi], já tinha estado em Marrocos. Quando falámos, houve uma empatia automática e uma percepção enorme, em como podia fazer essa ligação entre Portugal e Marrocos, pois foi essa a proposta e aqui estou!

Quando surgiu a proposta para chefiar a cozinha do Arady?
Hélder Martins: É uma longa história. Foi no ano passado, em maio. Em abril, talvez do ano passado, estava a abrir a Associação Náutica de Lisboa e um restaurante pequeno, em Cascais. Como estava como consultor, decidi abrir-me ao mercado. Surgiram algumas propostas, umas das quais da Muna. O Carlos [Fernandes] foi quem fez a entrevista e, depois, conheci a Muna. Foi quando conheci o projeto, não só a parte gastronómica, mas também a parte humana, que é muito importante, e senti-me a pessoa ideal para ajudar na parte da cozinha. No entanto, na altura havia outra proposta mais urgente de um hotel. Falei com a Muna sobre esta situação e a Muna disse “compreendo perfeitamente, mas um dia vamos voltar a falar”. A verdade é que, pouco tempo depois, sai. A minha mulher falou-me da mensagem da Mouna – “mandou-te uma mensagem tão bonita”. Respondi e voltamos a nos encontrar em novembro. A ordem deste restaurante atrasou – parece que foi o destino – e, no início deste ano, fizemos o trabalho todo. Também fiz formação em Marrocos com uma chef profissional marroquina, a Latifa. Investiguei muito, estudei e senti, em campo, como é cozinhar vários pratos, com processos e tempos diferentes, e transformá-los logisticamente para uma cozinha profissional, porque é diferente entre cozinharmos em casa ou fazer pratos para 50 clientes. 

Quantos meses esteve a aprender a cozinhar pratos marroquinos?
Hélder Martins:
Não foram meses, foi uma semana. Foi muito intenso, de manhã à noite. Posso dizer-vos que no último dia, quando fomos passear por Casablanca, estava a sentir o peso no corpo. Cerca de uma semana antes, tinha estado de férias no México, com a minha mulher, e fui logo para Marrocos.

Mouna Yaqoubi: Ele contou o seu lado da história, mas também há o meu lado da história. Quando ele saiu [depois de informar que ia para outro hotel], eu tive a certeza que ele iria regressar. Seis meses mais tarde, o Carlos e a minha filha Zeyna diziam que precisávamos de um chef, mas eu dizia sempre que tinha a certeza de que ele iria voltar. Em novembro, começámos as obras da cozinha e Zeyna disse novamente que precisávamos de um chef e de avançar. Uma semana depois, recebi a mensagem dele e disse-lhes: “bem vos disse que ele voltaria!”

Hélder Martins: O projeto transcende a parte operacional, gastronómica… Ou seja, é uma ligação maior de sonhos e há algo de espiritual. Eu que era mais pragmático, tive de dar a mão à palmatória.

Como se cruzam sabores portugueses com sabores marroquinos?
Hélder Martins: O meu processo criativo parte do abstrato para o conciso, ou seja, dos sentidos para algo táctil e de sabor. No caso das duas gastronomias, ambas não diferem tanto, especialmente se formos para o sul de Portugal. A parte do Alentejo tem muito o uso de ervas aromáticas, com a comida de subsistência, com o uso do pão, de fermentados. Portanto, fomos encontrar quase traduções diretas em algumas técnicas, mesmo quando se trata de pratos tradicionais, como o cuscus tradicional, o prato rei de Marrocos. Mas também temos outras tagines, como a de robalo da nossa costa, com chermoula, um piso de ervas e especiarias, parecido com o piso de coentros, mas com cominhos, pimenta-preta, que lhe dá intensidade. Aqui, há a fusão entre a caldeirada e a tagine. Temos os pastéis de khlii, cuja base é parecida com os pastéis de bacalhau, só não tem bacalhau, e funciona lindamente com maionese de harissa. Parece um croquete. A ideia passa muito por encontrar pontos de ligação entre o Magrebe e o sul de Portugal. Nos nossos petit fours servidos com o café, por exemplo, temos um biscoito marroquino e um alentejano, que são o briouat e um biscoito alentejano, com canela e limão.

Podemos dizer que, no Arady, não há uma união improvável. Há, sim, uma ligação entre ambas as culturas.
Hélder Martins: Nas bebidas também. Há uma bebida de verão, com laranja e canela,da zona de Mértola, no Alentejo, de onde é oriundo o meu pai, a qual é um dos refrescos que encontrei na zona de Merzouga, próxima do deserto [de Marrocos]. Há razões que explicam a existência de um certo tipo de comida e bebida em zonas em que há muito calor, onde a pessoa procura refrescar-se com bebidas mais ácidas.

Quais são as cidades mais gastronómicas de Marrocos?
Mouna Yaqoubi:
Fez é o berço da cultura, da cozinha refinada, a mais elegante, do saber viver. É verdadeiramente o coração da aristocracia marroquina. É a capital espiritual, assim como há a capital económica e a capital política de um país. 

À semelhança de Portugal, também Marrocos apresenta uma riqueza gastronómica marcada pelas diferenças entre regiões. Que pratos temos aqui, que podem ser considerados escalas do referido país do norte de África?
Hélder Martins:
Posso dar o exemplo da pastilla de frango, que, em Fez, a original é feita de pombo. Ainda pensámos fazer uma pastilla de pombo aqui, mas estamos em Lisboa e poderia existir uma ligação direta ao Terreiro do Paço… a de frango é estufado com especiarias, leva frutos secos, com a amêndoa, sultanas ou passas. Na nossa, decidimos usar alperce desidratado, para lhe dar o contraste do agridoce ao prato. 

Mouna Yaqoubi: Até há 20 anos, só tínhamos pastilla de pombo, mas, depois, apareceu alguém a dizer que era complicado para limpar e cozinhar, e teve a ideia de mudar para frango. Foi por isso que mudaram. Portanto, começou a haver pastilla de frango. Em seguida, houve quem tivesse a ideia de fazer pastilla de peixe… É assim que se torna a cozinha mais moderna.

Hélder Martins: Sou criativo por natureza, mesmo que não queira, não consigo fazer coisas tão tradicionais. Gosto de picar com os picos de sabor. Não comeram, mas a tágide de borrego, sente-se o sabor do borrego, em que entram as bimis, alho francês crocante… O empratamento tornar-se mais sofisticado, é feito à francesa.

“Lembro-me da pimenta preta que a Latifa punha e pensava que iria ficar picante, mas não. A comida ficava aromática, porque as especiarias marroquinas são muito diferentes das que temos aqui, que são mais comerciais. São especiarias menos processadas e mais selvagens, e menos trituradas

O que diz sobre as especiarias, com as quais passou a familiarizar-se amiúde?
Hélder Martins:
Muitos dos processos são muito semelhantes aos nossos estufados lentos, mas o uso das especiarias, a percentagem, é que muda muito. Há especiarias que entram em grande quantidade, que nós pensamos que está em overpower, mas não. Ficam a confecionar durante tanto tempo, que vão fazendo uma profusão e ficam equilibradas. Lembro-me da pimenta preta que a Latifa punha e pensava que iria ficar picante, mas não. A comida ficava aromática, porque as especiarias marroquinas são muito diferentes das que temos aqui, que são mais comerciais. São especiarias menos processadas e mais selvagens, e menos trituradas. Em casa, foi um processo entre tentativa e erro. 

Com quem aprendeu a cozinhar comida marroquina?
Hélder Martins:
Foi mesmo com uma cozinheira à antiga, das de casa, com boa mão para a cozinha, com técnicas mais domésticas, que fazem todo o sentido, as quais tive de tornar mais profissionais, exequíveis a nível logístico. Para mim, são muito importantes o processo e o sabor. Em alguns pratos, os legumes são trabalhados na gordura – em azeite, em óleo ou em banha de vitela. até porque se trata de uma gordura saudável, porque se não forem aquecidas acima dos 140 °C, não há uma oxidação dos lípidos. Depois, são confeções feitas muito lentamente. 

Há chás, cocktails inspirados em cocktails de Marrocos?
Mouna Yaqoubi:
Temos um bartender, que é especialista, a quem dissemos “temos aqui os ingredientes e este é o espírito”, ao que se seguiram as suas propostas e nós fomos selecionando. 

Hélder Martins: Lá está, foram-se treinando os sabores, como a zest da Medina, que tem limão Messier, limão lacto-fermentado com sal. Trata-se do limão Meyer, que são uns limões pequeninos e de sabor muito aromático, muito forte, que, depois, são guardados em sal, cuja fermentação para e se transforma num produto maravilhoso. Nesse cocktail cítrico, acaba por conferir alguma salinidade. É quase um limpa-palato.

Qual a sobremesa mais marroquina do Arady?
Hélder Martins:
A jawhara [de maçã verde, com caramelo salgado e gelado de baunilha] e o cheesecake [de figos com amlou].

Mouna Yaqoubi: Amlou, por exemplo, é uma especialidade do sul de Marrocos. É uma pasta berbére, que comem ao pequeno-almoço. É feito de amêndoa, mel e óleo de argão. Temos muitos figos em Marrocos, daí o cheesecake de figos. Não temos sobremesas de Marrocos, propriamente ditas, mas sobremesas revisitadas, isto é, feitas pelo chef e com um twist português.

Hélder Martins: Como é que fizemos esta sobremesa, a da jawhara? Com a mesma massa, pincelámos com mel, manteiga e flor de laranjeira, para fazer uma espécie de mil-folhas e recheamos com um puré, bastante intenso, de maçã de Alcobaça, canela, mel e limão. Sente-se que há aqui Portugal e acompanha com gelado de baunilha fresca de Madagáscar e caramelo salgado.

É ir! Bom apatite!

+ Arady
© Fotografia: João Pedro Rato

Legenda da foto de entrada: Carlos Fernandes, chefe de sala, Mouna Yaqoubi, proprietária do restaurante Arady, chef Hélder Martins, e as co-proprietárias Zeyna e Aya Bennani (filhas de Mouna Yaqoubi)

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