“Eu sou um construtor, um criador de imagens” / Jorge Molder

Numa manhã soalheira de outono, Jorge Molder abre a porta do estúdio para uma entrevista traduzida numa conversa descomprometida sobre a sua relação com a fotografia.

Desde cedo que a fotografia suscita interesse a Jorge Molder, o conceituado fotógrafo português que já passou pela função de diretor do Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, entre 1993 e 2009, tendo sido o representante de Portugal na Bienal de S. Paulo, em 1994, e da Bienal de Veneza, em 1999. Oito anos depois, a Fundação Telefónica de Espanha apresenta uma retrospetiva do seu trabalho distinguido, em 2007, pela Associação Internacional de Críticos de Arte / Ministério da Cultura. No início de 2013, uma fotografia da sua autoria é incluída na Coleção de Arte da UNESCO sendo, deste modo, traduzida na primeira peça portuguesa a fazer parte do conjunto de obras de arte da organização.

“Eu não tenho uma grande paixão pela fotografia. Nem nunca tive.”

O trabalho de Jorge Molder traduz-se numa paixão pela fotografia, pela imagem.
Eu não tenho uma grande paixão pela fotografia. Nem nunca tive. Tive uma paixão, e continuo a ter, pela imagem. Não sei fazer fotografia. Mas desde muito novo via quase todas as exposições que havia em Lisboa, que não eram assim tantas quanto isso… não tinha uma especial preferência pela fotografia. É óbvio que havia muito poucas exposições de fotografia, porque esta era menos reconhecida. Apesar de todas as limitações do Estado Novo, as coisas absolutamente extraordinárias e altamente avançadas aconteceram em diversas manifestações, com intervenções importantes, como as que estiveram ligadas à fotografia. Não tenho uma base de origem de confrontação no sentido de ser o horizonte com o qual nos deparamos como exclusivamente fotográfico. Comecei aos 15, 16 anos… e foi a única coisa que fiz.

A relação da fotografia com o real e a realidade está subjacente no seu trabalho?
A fotografia tem uma relação diferente, porque está inevitavelmente ligada à realidade mas, ao mesmo tempo, foi encontrando outras características curiosas. Surge quando os artistas começaram a interessar-se pela fotografia ou talvez quando os fotógrafos se interessaram pela arte. Nos anos 60. A partir dessa altura começa-se a servir-se da fotografia como documentação de uma certa arte que não tem como existir como documentação. Depois há pessoas que começam a trabalhar a fotografia com um estatuto diferente, em que a mesma já não é um documento, é deliberadamente uma obra que se pretende incluída no universo artístico, mas que, de algum modo, pretende renunciar a um conjunto de sinais mais ou menos académicos dalguma fotografia tradicional. Não se pode meter tudo no mesmo saco, porque pode ser perigoso.

“Não é possível fazer uma auto-representação que não é um auto-retrato e também não é possível fazer um auto-retrato que não é uma auto-representação.“

A imagem retratada é uma auto-representação que se confunde com o auto-retrato cénico de uma personagem. São universos diferentes… Um auto-retrato é uma fotografia de si próprio, a qual pretende, de algum modo, evidenciar algumas das qualidade íntimas de quem é retratado. Uma auto-representação é uma pessoa que se fotografa a si própria e funciona um bocado como um vulto. Achei que estava mais próximo da auto-representação e penso que, hoje em dia, estes dois universos são impossíveis de estar contaminados. Não é possível fazer uma auto-representação que não é um auto-retrato e também não é possível fazer um auto-retrato que não é uma auto-representação. Se me fizesse esta pergunta há dez anos, eu era muito mais perentório ‘não senhora, isto é assim; aquilo é assado’. Hoje em dia tenho as minhas dúvidas, porque acho que forma uma espécie de associação inseparável.

“O meu trabalho (…) está ligado a questões metafóricas.”

No decurso do seu trabalho, a representação baseia-se na obra de um escritor, é inspirada numa obra cinematográfica, numa ideia…
Foi tão útil para mim ler e ver coisas muito importantes como ouvir pequenas conversas de sala de espera… uma frase, um som, uma palavra… não significa que dê origem a alguma coisa, mas pode ser o princípio de qualquer coisa. O fundamental é encontrar o tema central para o subverter, porque se os temas centrais permanecem sem
serem subvertidos são sempre temas muito afetados por uma ideia de aprofundamento da realidade. Eu explico: Uma pessoa que faz um trabalho de sociologia, de filosofia, tem de respeitar os parâmetros em que trabalha e tem de os aprofundar. A arte funciona de outra maneira. Acho que funciona sempre por deslocações. Por isso, costumo dizer que o meu trabalho não está ligado a questões simbólicas; está ligado a questões metafóricas, porque uma metáfora é uma mudança de sentido. Faz parte do meu trabalho essas permanentes alterações de sentido. E… só há um autor que tem a ver com os meus trabalhos, [Samuel] Becket, no sentido de que tem um universo visual, na minha opinião, pelo qual me sinto mais atraído.

“A cor começou a interessar-me, porque posso controlá-la.”

As potencialidades do a preto e branco apelam ao dramatismo sequencial na fotografia tão associado ao seu trabalho, até surgir a Polaroid e o digital.
Vou estabelecer aqui uma diferença que é fundamental para mim: Eu sou um construtor, um criador de imagens.
Quando tenho de preparar alguma coisa, preciso de controlar o que faço. A fotografia a cor nunca me interessou
porque nunca tive paciência para encontrar formas de a controlar. A partir do momento em que a fotografia mudou para o digital, descobri que podia criar estratégias de controlo. Já tinha, entretanto, feito polaroids, pela qual me senti muito atraído; correspondeu a um mundo cromático com o qual encontrava uma proximidade muito estreita e também havia possibilidade de alterar a cor, subindo ou baixando a temperatura.
A passagem para o digital que, para mim, era uma passagem, porque a partir do momento em que existe uma coisa, o que está para trás continua a existir, mas já não existe da mesma maneira. Particularmente na minha vida, a mudança surgiu na altura ideal, embora os primeiros processos fossem toscos, problema que já não se põe hoje em dia. Nessa altura, a cor começou a interessar-me, porque posso controlá-la e, portanto, posso fazer aquilo que quero.

Dentro de cada sessão existe um percurso definido entre as imagens?
Não há uma delimitação exata, mas há contornos e há alguma familiaridade que se vão estabelecendo entre si provocando, por vezes, desvios, mas que se percebe. De vez em quando aparece uma imagem que não pertence à série, sendo afastada e posta no seu lugar. Pode ser que um dia venha a ter utilidade… Estes contornos vão acontecendo e existe, de facto, cumplicidade, aproximação, atração com os elementos que constituem o todo mas, ao mesmo tempo, mantêm a sua identidade.

Em “Rei, capitão, soldado, ladrão”, exposição a visitar no Museu do Chiado, há uma narrativa a contar ao som de uma canção…
Eu tive muitos sonhos e sonhei com o título, um bom título para a exposição. Um poema infantil que me lembro: “Rei, capitão, soldado, ladrão / Menina bonita do meu coração”. Mas há um outro equivalente em inglês que
sãos as “nursery rhymes”, um conjunto de poemas tradicionais e há um que é muito próximo do nosso, cujo título é “Tinker, tailor, soldier, sailor”, do qual pego no segundo verso que é “Rich man, poor man, beggar man, thief” que deu origem a uma série baseada na história de John Le Carré. Não tive a preocupação de fazer uma antológica sistemática nem uma exposição retrospetiva.

“O instagram é muito interessante.”

A evolução da fotografia regista um enorme potencial no presente, sobretudo com o instagram, que é olhado com desdém pelos mais puristas…
Respondo com o título do filme de um realizador que não é, de certeza, um dos meus preferidos, antes pelo contrário, que é Woody Allen: “Whatever works”. Hoje, estas questões são de uma mobilidade extrema, portanto a resposta é de facto essa: Desde que funcione… O instagram é muito interessante. •

 © Fotografia: João Pedro Rato