João Nuno Farinha

Neste início de primavera sentámos-nos à conversa com João Nuno Farinha a propósito de “SOLTO”, o seu mais recente trabalho de originais, editado no ano passado. Um álbum que propõe e traz novos caminhos para a Canção de Coimbra, novas estéticas, mas sem perder a linha que a caracteriza… Porque não deixa de ser, ainda, a Canção da cidade dos estudantes e de tanto mais.

Lançado no dia 04 de dezembro de 2020, no grande auditório do Convento São Francisco em Coimbra, “SOLTO” é o segundo disco a solo de João Nuno Farinha, voz e um dos homens do leme do projeto Fado Ao Centro – espaço no coração histórico da cidade de Coimbra -, que nos chega como “um trabalho que veio agitar as águas do Fado de Coimbra“.

A bem de quem, como nós, gosta de ver que nada faz parar a criação artística nacional, nem uma pandemia global, João Nuno Farinha não baixou os braços e presenteia-nos com 11 temas onde “desbrava novos caminhos para uma música que é (ainda) fado: através da fusão com outros instrumentos, mas também da colaboração com artistas que admira.

Escreve-nos, para nos falar de “SOLTO”, que é um “um disco com fado em fundo e mais meio mundo na música que canta, nas palavras dos poetas às quais regressa, nos encontros que repete e que renova! Coimbra, fado e pop e rock e jazz, sem rótulos. Música apenas. E é tanto. A música que tem sido e é caminho e destino. Ponto de partida e de chegada. Uma vez mais e sempre. Solto.” Diz-nos e mostra-nos que pode haver e há novos caminhos sem esquecer a sua matriz, sem esquecer as bases que fizeram dele um nome reconhecido na vertente mais tradicional da Canção de Coimbra que agora aparece, com ele, com novos ares.
Agarrando nas suas novas composições para dar o mote às perguntas que lhe queríamos colocar, desvendámos um pouco do seu Fado ao Centro, do seu crescer como músico e do que nos levou a esta conversa: o seu novo trabalho de originais. Sem mais demoras, soltemos a voz de João.

Entre o sono e o sonho”, como nasce o Fado ao Centro e qual o objectivo que está na génese de um espaço assim, em Coimbra? O que o faz diferente dos demais na tua cidade?
JNF:
O Fado Ao Centro nasceu há 10 anos da vontade de três amigos, ligados ao Fado de Coimbra (Luís Barroso, Luís Carlos Santos e João Farinha), que queriam ter um espaço onde pudessem actuar diariamente e dedicar as suas vidas a esse género musical. O Fado Ao Centro inovou e rompeu com a ideia vigente do conceito de Casa de Fados, onde o espetáculo é realizado à noite e com refeição. O facto de as apresentações serem às 18h00, sem refeição – apenas a cortesia de um cálice de vinho do Porto -, acabou por tornar o Fado Ao Centro um espaço singular, diferente de outras casas de fado por todo o país. Esta inovação acabou por singrar e, neste momento, até já foi copiada, na vertente de Fado de Lisboa, por outros estabelecimentos de Lisboa, Porto e Algarve. 

Sentes que é um espaço mais abraçado por quem de fora visita a Lusa Atenas ou há, também, uma parte da cidade que o tem como ponto de passagem e paragem?
JNF:
Há um número bastante variado de visitantes e ficamos muito sensibilizados sempre que um conimbricense entra no Fado Ao Centro, nomeadamente para o dar a conhecer a amigos visitantes. É bom sentir que nos consideram parte do património da cidade e sentem orgulho em mostrá-lo aos seus amigos e visitantes de fora. Em todo o caso, como defendemos um património cultural, acabamos por ser mais visitados por estrangeiros e turistas nacionais, tal como o são os diversos museus e monumentos da cidade de Coimbra.
Acrescentaríamos que a vossa inteligente localização estratégica torna a visita ao vosso espaço, a quem anda a descobrir a cidade, tentadora e impossível evitar.

Deixando o espaço e focando-nos no músico e no seu percurso até hoje…
Nos “Passos do Vento”, a construção da voz, de um João Nuno Farinha músico. Como nasce e se forma o músico, e como encontra ele na música de uma cidade que é sua, a sua identidade musical?
JNF
: O Fado de Coimbra vive comigo desde tenra idade, pois o meu pai foi cantor e desde muito novo que me habituei a ouvi-lo, quer em casa, quer quando me levava aos concertos que tinha com os seus grupos de fados. Acabei por conviver com alguns grandes nomes do Fado de Coimbra da geração do meu pai e fiquei com este género musical bem vincado no meu ADN. Quando ingressei na Universidade de Coimbra e comecei a ouvir Carlos Paredes, achei que era altura de começar a cantar e inscrevi-me na Tuna Académica da Associação Académica de Coimbra (AAC), em aulas de canto. Porém, foi só um pouco mais tarde quando entrei no coro Schola Cantorum da Secção de Fado da AAC, que encontrei o meu primeiro grupo de fados e com o qual dei os meus primeiros concertos.
Tiveste todo um crescer e toda uma envolvente que traçou o teu fado, inevitavelmente ligado e entranhado na música de uma cidade. Tomamos a liberdade de concluir.

Nesse encontro, com a Canção de Coimbra, quem foram as tuas referências, quem ainda tens como “ídolo”, como nomes maiores sem os quais essa Canção não seria a mesma, sem os quais hoje não estaria aqui a falar com o músico que conquista palcos além fronteiras?
JNF:
O meu maior ídolo foi sem dúvida o meu pai, mas como o seu percurso no Fado de Coimbra foi intermitente, motivado pela guerra colonial, o luto académico e o período revolucionário do 25 de Abril, acabou por não gravar, como alguns dos seus colegas, pelo que os registos que tinha dele eram gravações amadoras. Assim, acabei por ser influenciado pelos nomes que marcaram as duas gerações de ouro do Fado de Coimbra, nomeadamente António Menano e Edmundo Bettencourt da primeira geração e Luís Goes e José Afonso da segunda.

No teu percurso, qual o momento que tens como mais marcante, até este momento em que nos encontramos a falar e porquê?
JNF:
Talvez o momento da criação do Fado Ao Centro, pois foi assunção de que queria dedicar a minha vida à música. Digamos que na altura troquei o certo pelo incerto e assumi um risco em prol de um sonho de vida.
O teu fado no Fado com o Fado ao Centro.

Num passo atrás…
A tua voz, tão característica de uma sonoridade, é uma voz independente que se empresta, aqui e ali, ao espaço Fado ao Centro ou é voz desse espaço e são indissociáveis?
JNF:
O Fado Ao Centro tem tido a capacidade de recrutar novos talentos para o Fado de Coimbra, quer na guitarra, quer na viola e quer na voz. Naturalmente que, como fundador e gerente do espaço, dou mais vezes a cara, mas há um conjunto de novos cantores que, com frequência, emprestam as suas vozes ao Fado Ao Centro, assumindo eles os valores e os princípios que norteiam o nosso modo de estar e de apresentar o Fado de Coimbra.
És a voz do Fado ao Centro, mas com todo o devido e natural altruísmo de dar o espaço, também, a outras vozes. Concluo sem te deixar hipótese de contra-argumentares.

Ainda na tua voz inserida em projectos que não de nome próprio, sabemos que estás, há muito, ligado (como membro, creio) ao Coro dos Antigos Orfeonistas da Universidade de Coimbra. O que é para ti fazer parte dessa família, que tem de tão especial essa família e qual a sua importância, também, na construção de uma vida ligada à música da tua cidade?
JNF:
Desde a criação do Fado Ao Centro que acabo por ser um membro não ativo do Coro dos Antigos Orfeonistas da Universidade de Coimbra. Lamentavelmente, a minha atividade no Fado de Coimbra, com muitos concertos aos fim-de-semana, não me deixa muito tempo livre para uma colaboração artística mais regular com o coro. Mas, se não estou de corpo, estou efetivamente de alma, pois trata-se de uma família que cultiva a música da nossa cidade e comungamos dos valores da defesa e valorização desse património. Tenho lá muitos amigos que, apesar de não ir aos ensaios, me fazem sempre sentir em casa e inserido na família.  

Em 2018, se não estou em erro, lanças “SIM”, o teu primeiro trabalho de originais. No muito atípico 2020, em jeito de “Balada do Regresso”, arriscas editar um novo álbum e presenteias o teu público com “SOLTO”.

“SOLTO” vem como figurativo ou literal na intenção de soltares amarras de sonoridades mais presas a “cânones tradicionais”, ou é algo mais ou é nada disto?
JNF:
De facto o nome “SOLTO” não é inocente. Tem, acima de tudo, em vista o desbravar caminho por outras latitudes que não as tradicionais do Fado de Coimbra e que, ao fim ao cabo, também fazem parte das minhas influências musicais. A ideia subjacente ao “SOLTO” foi a de que nada seria proibido e estaríamos livres para levar a música para qualquer destino, sabendo que o facto de utilizarmos os instrumentos tradicionais do Fado de Coimbra e o meu jeito de cantar coimbrão, acabariam por ser o principal elo de ligação.

Onde, na tua música de “Mudança”, são quebradas amarras e traçados esses novos caminhos que nos falas?
Que trazes tu, hoje, de renovado no teu “Grito”, à cena musical que, como dizes, “é (ainda) Fado”?
JNF:
Em “SOLTO”, podemos descobrir a fusão com instrumentos que  habitualmente não são utilizados no Fado de Coimbra, mas também o recurso a alguns efeitos sonoros e equalizações electrónicas para a guitarra portuguesa. O mundo do acústico é também desafiado em “SOLTO” com o recurso à guitarra elétrica tocada com EBow. O objectivo é, acima de tudo, criar um novo ambiente sonoro para a minha música, assumindo com clareza o facto de estar a cruzar a linha do tradicional ou da matriz clássica do Fado de Coimbra.

Curiosidades. Sendo (ainda) Fado, ao vivo, é música de Capa Negra traçada ou essa fica guardada para um Fado ao Centro, para um registo e estética assumidamente “mais tradicional”?
JNF
: Sim, a capa fica guardada para um registo mais tradicional e naturalmente ligado ao Fado Ao Centro. A indumentária faz parte do estilo e o “descontraído” é a marca do “SOLTO” enquanto a capa empresta a solenidade necessária para um Fado de Coimbra mais tradicional e ligado à Academia.
Guardemos as capas.

No alinhamento das 11 músicas, João Nuno Farinha não faz esta viagem sozinho. Encontramos no caminho José Rebola (Anaquim), Viviane (Entre Aspas), Tiago Nogueira (Os Quatro e Meia), não esquecendo Hugo Gamboias, Diogo Passos, Ricardo Melo e Quiné Teles.

Porquê, se tiveres a paciência e tempo para nos desvendares todos,  cada um destes nomes para te acompanharem neste “SOLTO”? O que há por detrás de cada escolha, para cada música ou no todo?
JNF:
A ideia de liberdade presente neste “SOLTO” é também consubstanciada pela inclusão de convidados. Assim, experimentei pela primeira vez alguns duetos e colaborações com músicos exteriores ao mundo do Fado de Coimbra. Nos duetos, tive o prazer e privilégio de ter gravado com duas vozes que muito admiro: a Viviane (Entre Aspas) e o Tiago Nogueira (Os Quatro e Meia). O resultado, quer das vozes quer da colaboração com outros instrumentistas, como o músico brasileiro Beto do Bandolim, superou as minhas expectativas e trouxe abordagens diferentes aos meus temas, que efetivamente me surpreenderam.
A escolha dos convidados prende-se com o facto de serem pessoas que de alguma forma estão ligadas ao meu leque de conhecimentos, o que tornou fácil a sua inclusão.

Então, comecemos pelo José Rebola pois já percebi que alinhas em desvendar um a um.
JNF:
José Rebola é um músico e compositor que comecei a admirar aquando do lançamento do primeiro disco de ANAQUIM em 2010. Os meus filhos eram igualmente fãs da sua música, pelo que o disco deles foi companhia constante nas viagens de e para a escola. Fiquei fascinado com as palavras e mensagens das canções e quando resolvi lançar o “SIM” pedi ao Rebola duas letras para músicas minhas. Apesar de na altura não nos conhecermos pessoalmente, ele foi muito generoso e acedeu ao meu pedido. No “SOLTO”, para além de assinar uma das letras, José Rebola teve a amabilidade de rever as minhas próprias, dando-me sugestões e alternativas.

Rumemos ao Brasil…
JNF:
O Beto do Bandolim é um amigo que fiz aquando da minha digressão ao Brasil com o Fado ao Centro em 2014 e acaba por ser a participação internacional que gostaria de ter no disco. O seu bandolim casa perfeitamente com alguns dos temas mais populares, nomeadamente no “Vira dos Desamores” e ele teve a amabilidade de gravar do outro lado do Atlântico e mandar as pistas para nós cá montarmos.

A percussão nas mãos de Teles.
JNF:
O Quiné Teles é um grande músico do panorama da percussão em Portugal, membro da Brigada Vitor Jara, com quem tive a oportunidade de trabalhar em 2008 quando lancei o disco “Coimbra” com o Ricardo Dias e Pedro Lopes. O Quiné compreendeu muito bem a linguagem da minha música e fez um trabalho excelente em seis dos temas do “SOLTO”, gravando a percussão no seu sótão em Ílhavo.

A voz feminina sem aspas.
JNF:
A Viviane surgiu no projeto por intermédio do Toni Lourenço, que foi responsável pela gravação, misturas, masterização e acabou também por co-produzir. Queria ter uma voz feminina no disco e como o Toni conhecia a Viviane de colaborações passadas, entrou em contacto com ela e mostrou-lhe alguns temas. A Viviane escolheu o “Entre o sono e sonho” e gravou no seu estúdio no Algarve. Tive mais tarde a oportunidade de a conhecer pessoalmente aquando do lançamento do “SOLTO” e testemunhar a sua simpatia, amabilidade e generosidade em participar neste disco.

Pontualmente às Quatro e Meia.
JNF:
Durante o período do confinamento, assisti a uma interpretação notável do meu tema “Maria” pelo Tiago Nogueira. Sendo eu um fã do seu trabalho n’Os Quatro e Meia, não resisti em endereçar-lhe o convite para cantar comigo o “Pepa”, cujo poema era, tal como o “Maria”, de autoria de Antero de Quental. Não conhecia pessoalmente o Tiago e contactei-o pelas redes sociais. Fiquei muito feliz por ele ter aceitado e o resultado superou as minhas expectativas! Para além da amizade, o Tiago emprestou o seu virtuosismo interpretativo e vocal que tornaram o “Pepa” um tema mais aberto, refrescante e sedutor.

O Ricardo Melo no baixo.
JNF:
O Ricardo Melo entra no “SOLTO” por intermédio do Diogo Passos, que já tinha colaborado com ele em projetos anteriores. A sua experiência com o Baixo acústico ajudou a criar um suporte sonoro ao disco tão marcante que, apesar de não estar previsto, acabámos por incluí-lo em todos os temas. 

Por fim, Gamboias e Passos.
JNF:
O Hugo Gamboias e o Diogo Passos são amigos do Fado de Coimbra, com quem tenho convivido no âmbito do Fado Ao Centro. Pela sua postura musical, influencias ecléticas e acima de tudo pelo bom-feitio que têm, achei que eram as pessoas certas para me ajudarem nesta demanda por novos sons e novos caminhos para a minha música. Foi com eles que o “SOLTO” ganhou forma e vida, tendo eles sido responsáveis pela maior parte dos arranjos, produção e direção musical.


Sei para onde vou”. Para onde quer ir, e sabe que vai, João Nuno Farinha com a sua música? Há a vontade da internacionalização, do teu “SOLTO” como já há do Fado ao Centro? Ou lá está, são indissociáveis e dás o teu “SOLTO” ao Fado ao Centro?
JNF:
O “SOLTO” é um novo projeto que também procura o seu espaço e o seu público. Essa busca é algo que guia a atividade de qualquer projeto musical, pelo que se esse caminho o levar ao estrangeiro será, com certeza, para atingir esse mesmo objectivo.
Pois que venham muitos e mais palcos cá e além fronteiras e que leves a tua Coimbra, na tua voz.

Um espaço a descobrir numa próxima visita a Coimbra. Um espaço a conhecer na sua cidade, se ainda não teve oportunidade.
Uma voz e uma música que são unas, que são indissociáveis da cidade que as construiu, que fizeram delas um músico: João Nuno Farinha, aqui, com “SOLTO”. Um álbum que desafiamos a ouvir. •

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+ Fado ao Centro
© Fotografia: Tiago Cerveira

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