Qualidade, criatividade, preço. Qual o futuro da restauração? / Chef João d’Eça Lima

Estreou o restaurante Xisto a 8 de Junho de 2019, no coração de Penela. Nove meses após a sua estreia, teve de encerrar as portas. O reinício surge mais tarde seguido pela acção de fechar. No entanto, “baixar os braços” é expressão que não cabe no léxico deste chef lisboeta conquistado pelo receituário das Beiras que quer continuar a servir à mesa.

João d’Eça Lima foi professor de História durante mais de 16 anos. Com a formação em cozinha, pela Escola de Hotelaria e Turismo de Coimbra, deu o passo para o universo da restauração, já que, desde sempre, faz registo e investigação, bem como recolha de receitas, de processos e de produtos nacionais centrados nas receitas da região beirã, sempre acrescidos de conhecimento histórico e cultural da gastronomia. 

 

A que se dedicou a fazer durante estes últimos meses?
Foi um tempo (in)esperado. Havia uma parte de mim, a de quem gere, que sabia que seria possível uma nova paragem e, por isso, foi-se pensando e fazendo com essa ideia, a de uma necessária pausa. Havia outra parte, a de quem cozinha, que nem queria pensar nisso e acreditava ser possível continuar. Por isso, nos últimos meses fui fazendo o que não tinha feito antes. Reunir um conjunto de pessoas para falar e pensar a cozinha e o futuro que podemos construir. Primeiro com doze momentos a que chamei de “Conversas de Cozinha”, onde reuni chefes, investigadores, gastrónomos e fomos desbravando ideias e partilhando com quem seguia, entre eles Nuno Diniz, Diogo Rocha, Francisco Siopa, Margarida Bessa Rego, Guida Cândido, Virgílio Gomes…
Agora, com uma série de registos que chamei de “Sabores da Memória”, também com personalidades da cozinha – Justa Nobre, José Júlio Vintém, Rodrigo Castelo, entre muitos outros –, procuro descobrir quais as receitas, os produtos, os lugares e os sabores que habitam e são a raiz da sua memória de cozinha. Vou também refazendo pratos, procurando receitas, desenhando uma luta pela valorização da cozinha beirã, para que não se perca na “espuma” dos dias. E resistindo com se pode para quem tem o seu espaço e nele é cozinheiro e proprietário. São tempos muito difíceis em que cada dia é sempre mais um desafio a ser superado.

Houve tempo para pôr em prática o que anteriormente lhe era impossível?
Houve. Houve tempo para registar muita coisa. Investigar e procurar eram já coisas que fazia no dia-a-dia, mas fazer o registo é diferente. É sistematizar o conhecimento gastronómico que se vai adquirindo com o tempo – isso foi o que mais fiz. Produtos, produtores, receitas, lugares, memórias e gente. Nunca esquecer a gente que conservou o legado a que hoje chamamos de tradição e temos como certa. Nós seremos aqueles que, no futuro, deixaremos algo para outros. Se não registamos, sofremos o mesmo mal que nós encontramos no conhecimento sobre a cozinha no nosso país. Por isso, e porque temos os meios, mais do que nunca, tal é urgente. Só não havia tempo. Agora, infelizmente, por um lado mas, por outro, trouxe essa possibilidade. E isso é enriquecedor, porque sei que assim posso deixar algo, como que, que procuro sempre a raiz do conhecimento e do sabor deixados por alguns.

Se lhe pedisse para falar sobre o seu percurso profissional, o que diria acerca destes 12 meses?
Foi um tempo demasiadamente desgastante. Duro! Principalmente para quem estava e está a construir um projecto único, no meio da serra, longe dos centros urbanos. Numa zona onde não há tradição de projectos que rompem com o comum. Eu dizia tantas vezes que, para fazer o que se fez num lugar como onde o que eu estou, foi e é preciso trabalhar o triplo. Agora e neste período foi preciso trabalhar muito mais ainda. Aquele caminho de dar a conhecer a quem nos queira visitar que estávamos lá todo o ano, que mudávamos a carta à medida das estações – mas mudar completamente –, de ter pratos e ingredientes que só eram servidos em certos dias que eram os da época ou momento certo do ano, de tanta coisa que foi preciso construir com trabalho, e ver isso a ser abraçado por quem nos visitava, foi muito bom!
Depois, foi o fecho. Uma e outra vez agora. E perceber que não era só o trabalho, não era só do trabalho intenso que dependíamos, mas de algo que não podíamos controlar e que não dependia em parte de nós. Da parte que dependia implicava fechar. Por responsabilidade como o fizemos sempre. Mas isso fazia com que a sustentabilidade económica e de projecto fosse ficando por um fio. E assim se mantém.
Foram 12 meses de uma imensa montanha-russa, mas também de uma alegria por saber que quem nos visitava nunca nos abandonou. Voltaram sempre que possível. Deram vida ao lugar esquecido e, por isso, há esperança! Foram 12 meses de um desgaste imenso, mas saboroso, porque não se desistiu e se encontrou o verdadeiro significado para a palavra esperança. Ao saber que os outros, quem visita, quem fornece, quem trabalha, não desistiu de nós, apesar de todas as dificuldades.

Está a desenvolver pratos/criações para a nova temporada que se avizinha? Pode levantar o véu?
Sim. Estou todos os dias a pensar e a desenhar novos pratos até porque, a retomar em Maio, como espero, já iria renovar a carta mesmo em Março com a chegada da Primavera. A lógica e identidade do Xisto sempre assentou nisso: em ter uma carta por época com sabores únicos e que não se repetem. Por isso, estou a pensar em trazer aquela alegria do renascer que a Primavera tem. E como a nossa inspiração vem da cozinha beirã, este ano voltamos a ir do mar à serra em sabores, mas assente numa ideia de alegria e de partilha, de encanto e de espanto. De descoberta! Penso que as pessoas que nos visitarem querem encontrar isso – esse lugar de encanto e memória que reconforte. É nisso que estou a pensar e é isso que creio que será a essência da carta nova.

Que novidades pondera incluir nos menus de degustação e na carta aquando da reabertura do restaurante Xisto?
Vamos mudar a carta, para sabores mais frescos e de Primavera. Vamos apostar em algo que até aqui ainda não tínhamos trabalhado mas que pode trazer alguma curiosidade. Não é hábito ter pratos vegetarianos na carta com um enfoque muito dedicado, mas isso será algo que estará previsto, assim como pensar numa linha de take away para quem quer descobrir a cozinha de montanha. Tudo nos potes de barro preto, o que torna ecológico e único, e que pode ser um meio de levar quem nos visita a regressar para descobrir novos sabores. São ainda ideias em construção, mas que começam a ganhar forma. Por outro lado, não abdicamos do peixe sempre fresco e vamos trabalhar algumas receitas das gândaras que ainda não tinham entrado nas cartas.

Vai implementar mudanças na sua cozinha, no sentido de abranger um público mais lato ou a estratégia é cingir o serviço a um grupo mais restrito de clientes? Como explica esta decisão?
Desde o primeiro momento que essa pergunta me atormenta – se devo ou não fazer mudanças. A decisão foi sempre e será a de manter o rumo. O projecto do Xisto tem uma identidade muito própria – o melhor produto, local, de proximidade, com memória e artesanal, que represente e traga à mesa o melhor da cozinha das beiras que é uma das mais esquecidas a nível nacional e, com isso, com mais para descobrir. Por isso, não vou fazer mudanças.
Quem vai ao Xisto sabe que experiência o/a espera e isso é uma questão de identidade que é preciso manter para ser diferenciador. No entanto, como referi, vamos complementar a oferta com as opções vegetarianas em carta e de take away por encomenda. Ambos também com a marca dos sabores da memória e representação da região. Em produtos, sabores e experiências.

Qualidade. Criatividade. Preço. Como é a sua cozinha e como vê o futuro do sector da restauração a partir destas três palavras?
Qualidade é o que, mais do que nunca, um segmento de quem vai a restaurantes, vai procurar. Saber a origem, a forma de produção, o sabor. Determinante nos próximos tempos em que as pessoas passaram a valorizar ainda mais a ida a um restaurante. A criatividade não passa só pelo acto de inovar. Não há criatividade sem conhecimento e mais do que desconstruir é preciso, agora, na cozinha, reconstruir. Reconstruir o que é uma extraordinária e memorável visita a um restaurante, seja pela criatividade da recuperação de um sabor antigo, de memória, de raiz regional e com significado, seja pelo serviço que é fundamental e que tem de ser muito mais valorizado no futuro próximo. O preço será justo. É tão importante determinar a justiça do valor, do que é servido.
Para quem visita é muito importante encontrar essa justiça no custo que determina a valorização da cozinha, do produto, do lugar e, por fim, do destino como lugar a revisitar. Creio que essa será a essência da minha cozinha, do meu espaço e do futuro que quero começar a reconstruir.

Quão desafiante se tornou este último ano no percurso do chef?
Na vida, há momentos verdadeiramente duros, de uma brutalidade imensa. Quem começou com um lugar, um sonho, um desafio e foi, com todos os erros, falhas, incertezas, pedidos de desculpa e correcções, com determinação e escolhas, desafiando o comum para fazer diferente, foi um momento muito difícil. É muito difícil! Todos os dias há mais uma coisa para resolver que se tornou quase impossível, porque não depende de nós.
Nós, cozinheiros, gerentes, restauradores, somos gente. Pessoas! Gente que faz bem e mal. Boa e má. Mas depois há as circunstâncias que nos fazem ser e ter de tomar decisões ou agir de formas que não nos definem, mas que passam a determinar a forma como temos que as fazer. É, por isso, que é difícil!  É por isso que, este tempo absurdo se torna um tempo em que, como cozinheiro, me desfiz para ser preciso agora me refazer. Novamente. Porque as pessoas são mesmo assim. Como diria o escritor, nem boas nem más. Como os rios. E nós, nas cozinhas e na restauração, a primeira coisa que vamos ter de fazer é restaurar, refazer, renascer, porque só assim podemos ter a alegria que vamos precisar para dar aos outros, aos que vão regressar.
Este ano, foi isso. O resto é o futuro. Que seja saboroso, para nos trazer a alegria e a força para reconstruir tudo.

+ Restaurante Xisto

© Fotografia: Pedro Antino

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