Carrer de Sant Pere Mitjà é a rua em que vi o deserto quando a iniciei, tão árida e tórrida quanto alta e estreita, quase sem fim, embora desague na encantadora Plaza de Sant Pere e sem dúvida abrigue tesouros: aqueles oásis que apenas o deserto possui.
Quando bati, por impulso e intuitivamente, na porta da oficina de Carlos Santos, ainda não sabia exactamente o que procurava, nem tinha ensaiado uma introdução ao discurso, pelo que a minha interpelação poderá ter sido alvo daquela estranheza que levou Carlos a olhar-me com alguma hesitação. Pese embora, o que lhe disse deveria apresentar alguma coerência, já que me convidou a entrar e conversámos um pouco. E o que lhe disse? A verdade. Pelo que se gerou, provavelmente, uma expectância mútua, que mais tarde não se goraria quando nos sentámos para que me ajudasse a reflectir, ou quando me acolhia todas as manhãs em que lhe dava os bons dias ao passar em frente à oficina. Para mim era importante manter alguns hábitos, pelo que passava invariavelmente à sua porta, e mais à frente tomava café em La Candela, onde, diga-se, fui tratada nas palminhas. Um dia, ao final da tarde, quando regressava das minhas deambulações, pergunto se têm vermute, ao que me respondem que sim, então, combinamos para daí a um pouco, venho, mas fico triste porque não há mesa na esplanada, dizem-me vamos pôr uma mesa para ti, ah, então o vermute, rematam já está. Sant Pere, pelo que me foi dado perceber e sentir, é talvez uma das partes mais encantadoras de Barcelona, e aquela em que me alojei por pura casualidade, mas sem dúvida a que escolhi por decisão; como María me dizia: ou adoras ou detestas, se detestas, nada a fazer, se adoras, é sem dúvida o local mais fascinante da cidade. Recordo vividamente o meu sentimento ao entrar na Carrer de Sant Pere Mitjà, à esquerda da Carrer de Verdaguer i Callís, semelhante a ter penetrado nas profundezas de outro planeta, não sem medo. A rua, como viria depois a perceber, reserva de facto alguns segredos preciosos. Percorria-a duas vezes à meia-noite, sozinha, e, realmente, impõe respeito.
Carlos Santos distingue, relativamente aos móveis em que intervém, a operação de “restaurar” da de “reparar”: para si, a primeira significa dar uma nova vida, e a segunda “cura” as coisas, arranja. Quando me entregou o seu cartão de visita, saiu, qual coelhinho de mágica cartola, de uma caixa de madeira com aspecto precioso, antiga, bastante antiga, decorada com as pinturas delicadas de senhoras jovens. Aliás, a sua oficina apresenta um ambiente irresistível, com as ferramentas alinhadas por funcionalidades e tamanhos, e é nela que então “salva” os móveis, aqueles que consegue efectivamente salvar, porque existem peças actuais que, pelo tipo de materiais e forma de construção, se apresentam impossíveis de comportar qualquer intervenção. É muito interessante pensar com Carlos, quem de facto se diz uma espécie de facilitador da vida das pessoas que lhe trazem as coisas avariadas. Há 30 anos que o faz, 25 dos quais passados na Carrer de Sant Pere Mitjà. É um gosto imenso conversar com Carlos Santos: uma pessoa paciente, um excelente ouvinte e que fala, por sua vez, com uma claridade e simplicidade esclarecedoras. Ao ouvi-lo, na verdade, proporcionava-se encontrar-me, aproximar-me da voz interior, e vi-o como também cirurgião das coisas de uso quotidiano, daquelas em que não nos detemos, daquelas que não nos fazem parar, neste sentido: uma obra de arte, por excelência, obriga-nos a parar, mas uma cadeira puxa-se para que nos sentemos. É curioso, por isso, que Carlos associe o restauro às obras de arte e a reparação às “coisas” que nos circundam na vida quotidiana e que não precisam, por isso, de um “pedestal”.
Carlos Santos começou por estudar desenho industrial, mas não apreciou; uma amizade levou-o à intervenção em móveis, por acaso, mas uma memória de infância seria responsável pela certeza do caminho. Aprendeu com um mestre, à prática foi associando alguns cursos, e começou pelos móveis antigos, dos séculos XVIII e XIX, quando ainda existiam antiquários e quando as antiguidades exerciam fascínio, o que se alteraria sobremaneira há alguns anos: hoje, afirma, as madeiras fazem-se para um ciclo de 20 ou 50 anos. Os ciclos curtos estão conectados com a “moda”: impõe-se o “desenho” com novos conceitos, exigindo também outros materiais. Existe, efectivamente, uma alteração radical de paradigma, como me explicou: há 200, 100 anos, os móveis necessitavam de 4 parafusos grandes que amparavam e estruturavam as peças; como se existisse um peso, uma lógica, uma ciência do encaixe? Pergunto. Carlos diz que talvez, sim, porque hoje os móveis são feitos de inúmeras peças, muitas cambiáveis, que necessitam de “milhares” de parafusos e outras partes pequeninas. Disse-lhe que a situação que me descrevia era semelhante à que o nosso mecânico, um senhor com verdadeiro amor pelos carros e pela sua profissão, nos costuma contar: um puzzle, um quebra-cabeças, geralmente sem possibilitar adaptações ou intervenções mais criativas e independentes, logo, uma parte pequenina doente pode significar, tão só e apenas, o abate. Carlos Santos compara a dispersão que me descreveu à pulverização do pensamento na contemporaneidade, e, por tal, consequente desordem, também mental. O que associado à fabricação contínua para degradação rápida subsequente se torna alarmante e arruína a vida, como rematou.
Não se estranha, pois, que Carlos diga que “salvo os móveis: contra a destruição.” É preciso, sim.