RESTAURAR: os Rostos, com David Casallachs Pérez

Durante alguns dias, os primeiros, e quando cruzava a Carrer de Sant Pere Mitjà, deparava-me com uma porta envidraçada pintada de vermelho sempre fechada e fascinavam-me os desenhos que se encontravam afixados nela. Um dia encontrei-a aberta e entrei.

No dia em que me vim embora de Barcelona ainda consegui despedir-me de David e ele disse-me algo parecido com isto: já viste que conversámos durante 3 horas e mais pareceram 5 minutos? Respondi-lhe: verdade, tens razão. É: há coisas que acontecem e há outras que não. Por vezes, quiçá, passamos anos em redor impossibilidades, de absurdos, de recusas, e tentamos encontrar razões plausíveis para um tamanho desencaixe, parecendo ciladas do destino, provas a que somos submetidas, provações que não deixam certamente de criar resistência se as soubermos beber homeopaticamente, sem desespero, mas: natural é o encontro, é o sim da comunhão, é a positividade de uma harmonia. Quem tem tempo para dedicar a uma pessoa que não lhe agrada? Será tolo. Entrar no estúdio e “casa” de David Casallachs Pérez foi semelhante a abrir um alçapão e deixar-me deslizar por um túnel. Mantém-se naquela morada, em parte, porque gosta do espaço interior, por outro lado, porque esta rua resiste à especulação imobiliária, o que advém de não ter saída directa para a Via Laietana, conferindo essa sensação de ser sitiada, e de nos sitiar por tal. Claro que gostei, e muito, daqueles desenhos, em especial de um, e quando David abriu uma caixa pejada de pregadeiras, pendentes e anéis, algo semelhante a uma comoção se formou. 

A sua formação, de base, é na área da música e David dir-me-ia que a música lhe é essencial, mas depois faria aprendizagem no âmbito das artes visuais numa pequena escola privada de uma localidade fora de Barcelona, que pertencia a um casal: argentino e catalã. O seu professor desafiou-o a enfrentar a cidade, onde mais tarde haveria de abrir outra escola, na qual David agora lecciona, o que explica que a porta do seu estúdio esteja fechada nalguns dias da semana; mas no estúdio há espaço ainda para dar aulas, como comprovei quando lá entrei pela primeira vez: aí se encontravam dois dos seus alunos. Aliás, é assim que vive: dá aulas, faz os seus desenhos e pinturas, não tem contrato com galerias e raramente trabalha por encomenda. Tem vindo a calcorrear um caminho, a aprimorar o seu conhecimento técnico e expressivo, a submergir-se, o que considera essencial para se entregar à preparação de outras pessoas: quanto mais se conheça e particularize, mais bem posicionado está para conduzir, pessoal e singularmente, quem lhe chega para, por sua vez, iniciar-se. Por outro lado, desenvolve o método, que concluímos ser de facto diferente de professor para professor, mas que deve sempre permanecer atento à especificidade de quem a ele recorre, embora se relacione intrinsecamente com os valores por ele defendidos para a arte, em que avulta, por exemplo, o desenho. 

Tem um fascínio por fotografias dos anos 20 do século XX, essencialmente de mulheres e a preto e branco, pois considera-as muito misteriosas, sobretudo no olhar como espécie de promessa, uma particularidade generosa que não encontra nos homens. Pese embora, também desenha homens, amigos, já que lhe interessa o desafio da anatomia. E gostava, agora, de ter uma modelo, que fosse bastante plástica. Quando me disse tal, lembrei-me, e falámos, daquela parte da arte na Modernidade que afasta os “modelos” para insistir, e investir, na memória, no que vem gravado no interior do artista. Mas David não sabe o que vai desenhar, por mais fotografias que recolha, ou modelo que o assista: “se soubesse o que ia desenhar, não o desenhava, mas escreveria”, diz-me. Até porque, continua, há imensas coisas que se abandonam, e o desenho final é sempre uma sucessão de descobertas. David Casallachs Pérez: a escrita também nos surpreende… Pese embora David recorra a uma base que comporta a fotografia, ou a um real aparentemente plausível, afirma que a sua arte caminha cada vez mais num determinado sentido de abstracção, de síntese, em que a expressão deflagra em consonância com certa raiva, em grande medida advinda, também, do momento de pandemia que atravessamos. Sim, depois de um momento pensativo, acaba por ver que o seu gesto, antes mais contido e circunscrito, passou a ser mais largo e nervoso, as superfícies maiores. Além da síntese no que à questão mais técnica respeita, indicou outra coisa, algo como uma condensação simbólica, e terminámos rematando que, por tal, os sonhos não serão nunca casuais. 

David Casallachs Pérez acredita no olhar e nas mãos, ressaltando igualmente a boca, ou seja, acredita no Rosto. E eu também.

Fotografia © David Casallachs Pérez

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