Despeço-me de Barcelona na companhia, pela quarta vez, do Antic Teatre, sem ponto. Deixo-vos, pela décima vez, também, com uma memória tão grata, quanto frutífera e amiga.
O percurso inaugural na cidade, pela Carrer de Verdaguer e Callís, foi acidental, neste sentido: era suposto estar um táxi à minha espera quando cheguei a Barcelona que, apenas porque se prestou acontecer um desencontro, nunca me levaria ao destino, e fez com que me dirigisse à praça de táxis onde, mesmo tendo inicialmente hesitado, acabei por escolher alguém que não sabia a onde me iria levar, antes de lhe dizer, claro; tenho sérias dúvidas sobre se o ponto onde me deixou, em frente ao Palau de Música, tivesse sido o mesmo se a opção fosse ter esperado de facto pelo primeiro. Porque, pela disposição e localização que depois verificaria, seria mais razoável ficar na Plaza S. Pedro. Por tal, a viagem poderia ter sido completamente diferente, tanto a do táxi, como a totalidade da minha experiência em Barcelona.
Por que razão partilho convosco este acontecimento? Porque existem situações na nossa vida, e muitas, que resultam de acasos tamanhos, que depois se tornam em objectivos, ou não, passíveis de integrar uma história que nos vai contando, adensando, até tornar-se naquilo a que se chama identidade. Sim, claro que todos/as precisamos de grampos que nos liguem à Terra: mas devem ser precisamente isso, grampos. Os surrealistas tinham uma predilecção pelos “cadáveres esquisitos”, que para mim são, realmente, uma alegoria feliz, tanto para toda a arte, como para a vida. Nascer é uma sorte. Não acredito numa arte separada da vida: porque “realismo” e “simbolismo” são cooperantes. Quando Walter Benjamin vem alertar para a queda da “aura” em face do recrudescimento da máxima exposição, não se trata de estar a revelar uma melancolia perante a perda do valor de culto das obras de arte, logo, também um saudosismo em relação às peregrinações que lhes possam estar associadas; mas trata-se, antes, de permanecer plenamente consciente de que é o realismo que está em perigo: porque Benjamin soube, sabe, como outro/as sabem, que na “realidade” co-habitam, tanto os homens e as mulheres, como os fantasmas e as fadas.
Hans Belting di-lo de uma forma óbvia, quando nos explica que, mesmo antes do/a fotógrafo/a captar uma imagem de alguém, nós, in corpore, tanto na mímica como nos gestos, já nos apresentamos e transformamos numa imagem. Assim, a “realidade” tem tanto de concreto, como de abstracto e, incontáveis vezes, a arte pretende captar precisamente essa latência, dando-nos a ver um inconsciente visual, exercendo algo como uma redução: mostra, estilizando. Havendo a predisposição para encarar desta forma a “realidade”, a relação com a arte será mais livre e comprometida. E é isto que acontece no Antic Teatre, uma relação com a arte mais livre e comprometida: desde a ocupação do edifício, passando pela sobrevivência de um espaço que pretende dar guarida à criação inaugural, e acentua os caminhos experimentais que se fazem o mais das vezes tacteando. O Antic Teatre é um útero fermentador. E através dele percebemos como as CASAS fazem história, já que se implanta num antigo palácio residencial do século XVII, provindo de 1650 e considerado património cultural da cidade de Barcelona.
Foi uma sorte ter-me desencontrado do programa inicial na minha chegada a Barcelona: lançando um olhar retrospectivo vejo como tudo poderia ter sido diferente. Reificaremos a nossa experiência? Defendê-la-emos, sim: as palavras, as imagens, os encontros, as obras de arte. Mas reificar, não. Agora vou contar-vos um segredo: nunca gostei muito de “teatro”, e provavelmente pelas razões que haveria de encontrar explicitadas nas reflexões de Hans Belting, então, que a “realidade” é latentemente abstracta. Assim, nunca vi os livros separados da vida, as obras de arte separadas da vida, não, sempre vi tudo junto, se bem que com naturezas específicas: mas fertilizando-se continuamente. E até acho que as mulheres, sinceramente, têm disso uma percepção mais vívida, porque são engendradoras potenciais no corpo de algo invisível. Desculpem-me, homens: não digo que não o possam saber, e sentir, mas de forma diferente – por empatia. No Antic Teatre parece que mergulhei, como por magia, num útero fermentador.