O restaurante da chef Ana Moura é de família e fica no coração de Porto Covo. A baía e o Atlântico favorecem a vista do terraço. Na cozinha reinam os produtos regionais e à mesa serve-se receituário do Alentejo.
O pão alentejano é comprado na padaria de Porto Covo. A manteiga de porco é feita a partir da gordura que se vai formando aquando da fritura do toucinho. Os três elementos constituem o começo da refeição no Lamelas, o restaurante da chef Ana Moura, natural de Lisboa, instalado num espaço acolhedor e de bem-receber e comer, cuja decoração cuidada e de bom gosto coube a Fernanda Lamelas, a mãe, também responsável pelas reservas, enquanto a secção dedicada ao vinho está nas mãos de António Moura, o pai.
Trata-se, portanto, de um projecto familiar implementado numa terra intrinsecamente ligada às suas raízes maternas. “Venho para aqui de férias desde pequena. O meu avô viveu cá”, esclarece Ana Moura, que, no ano sabático de 2020, “vi este espaço, quando estava cá de férias, gostei muito e decidi vir para aqui. Era um restaurante, que já não abriu há dois anos e, no ano passado, abrimos nós”, a 18 de Maio de 2021. “No fundo é um sítio que me diz muito, que eu gosto de pertencer e pelo qual quero muito fazer”.
Ainda no início da refeição, experimente as entradas. Escolha a quantidade em consonância com a vontade de experimentar e não vai arrepender-se. Estas podem variar entre o paté de fígados de abrótea feito na cozinha do Lamelas, a saladinha de polvo, e a saladinha de ovas frescas, ou não fosse Porto Covo uma aldeia piscatória e, ao mesmo tempo, um dos pontos de partida da Rota Vicentina. As lulas fritas com maionese de limão, a salada de gaspacho, decorada com queijo curado e uvas, e o almece, legado mourisco, que consiste no estado natural do requeijão, com soro coalhado, e servido no Lamelas com peixe curado na cozinha do restaurante, são outras das opções. Pode haver outras, como os carapauzinhos fritos, com molho de escabeche, para júbilo de grandes apreciadores de tão vivas memórias!
Poder-se-ía dizer ‘a refeição fica por aqui’, mas não. A carta dificulta a escolha, tal é a vontade de experimentar mais pratos de Ana Moura e da sua pequena equipa, que se revela grande. Mesmo quando o peixe predomina as sugestões, ou não fosse Porto Covo o mar, com o porto mesmo ali em baixo, onde as embarcações são embaladas pelas ondas do Atlântico.
“A minha principal preocupação é comprar peixe na lota de Sines”, explica Ana Moura. A mesma premissa do local é transversal aos outros produtos usados na confecção dos seus pratos, “não só a produtores locais, mas também a vendedores locais, ou seja, compro o pão na padaria de Porto Covo, a fruta no mercado de Porto Covo, compro o peixe no mercado de Santiago [do Cacém]. Compro a carne num talho daqui. Compro sempre o mais local possível, para ajudar a economia local”. No início, a chef falava pessoalmente com os fornecedores e produtores, para conhecer o produto e explicar o que tinha em mente, “mas acabei por adaptar a carta aos produtos que eu tinha, ou seja, trabalho os peixes que há. Por exemplo, trabalho muito a abrótea. Não conhecia e descobri que é um peixe muito tradicional aqui, então passei a adaptar aos produtos locais e aos sabores do Alentejo, com todos os produtos daqui”.
{“Aqui é importante que haja pratos ligeiros, porque estamos perto do mar, mas o sabor é ainda mais importante.” Ana Moura}
Agora, os produtores e os fornecedores levam a sua matéria-prima ao restaurante Lamelas. “Vou lá de vez em quando falar com eles”, mas, habitualmente, informa cada um sobre os produtos de que precisa de ter no dia seguinte. “Havendo uma boa relação, não é preciso ir lá buscar.”
A sopa de peixe é uma das escolhas a fazer, bem como a tiborna de tomate, pimento e queijo ralado. “Este prato só faz sentido no Verão.” No alinhamento dos exemplos, é de salientar a abrótea, com amêijoas, em molho verde ou o choco saltead com batata e azeite de poejo, em harmonia com a costa alentejana, com o que o mar e o campo dão em cada estação, e como tudo faz sentido. “Aqui é importante que haja pratos ligeiros, porque estamos perto do mar, mas o sabor é ainda mais importante.”
A açorda alentejana, com linguado frito, tem ovo escalfado. “Não é ovo a baixa temperatura. O peixe é frito. Tirei as espinhas, para ficar mais sofisticado, mas os sabores estão lá todos”, reforça Ana Moura. Depois há o peixe porco à alentejana, “mais leve do que a carne de porco à alentejana”.
O ovo frito com carabineiro é uma homenagem à chef Isidora Beotas, co-proprietária do restaurante El Almacen, em Ávila, na província de Castilla y Leon, com quem trabalhou em 2011 e 2012, período durante o qual conheceu por dentro a cozinha tradicional desta região espanhola. O arroz cremoso de marisco e peixe do dia é outra opção a ter em conta, pela forma como o arroz é cozinhado e pela generosidade de pescado e marisco neste delicioso prato.
{“Qualquer cozinheiro é a soma do que já comeu e dos sítios onde já trabalhou e viveu.” Ana Moura}
Do campo, é de enaltecer o arroz caldoso de coelho, prato incomum, daí eleito pela chef Ana Moura, para fazer parte da carta do Lamelas. “Primeiro porque não faço o que as outras pessoas fazem normalmente.” Depois, veio a lógica: “peguei num livro de comida alentejana. Fui ver o que há de carne. Todas as receitas são com borrego, porco, coelho, mas não há uma única receita de vaca. Há uma de língua de vaca no livro de Maria de Lourdes Modesto. Por isso pensei, ‘vou fazer coelho, borrego e porco’, mas acabei por tirar o ensopado de borrego. Arroz de coelho? Porque gosto de fazer arrozes. É mais caldoso do que o de peixe.”
Há migas de chouriça com entrecosto, um prato mais pesado. “Esse é o que foge mais. É mais intenso de sabor, mas, para mim, faz sentido, porque tem migas. Estamos no Alentejo. Tem de haver um prato para as pessoas que querem carne e não peixe.”
No restaurante Lamelas, os pratos mudam de acordo com a estação ou de acordo com o que vai dando o mar e o campo. Em todos, a chef Ana Moura tem o seu cunho: “qualquer cozinheiro é a soma do que já comeu e dos sítios onde já trabalhou e viveu. A minha cozinha reflecte isso. É uma cozinha com sabores alentejanos, que faz sentido face a este sítio e à vista que temos. Isso, para mim, é importante.”
Quanto às sobremesas, regozijem os amantes do chocolate, pois “mousse de chocolate tem de haver!” E esta tem crumble de amendoim. A tarte de queijo com caramelo e pistácio é inspirada na sobremesa típica do País Basco. “Já tenho desde a Bacalhoaria, porque é uma sobremesa leve, mas era diferente e trabalhosa do que esta.” As migas doces “é aquele prato típico daqui” e é servida com nozes e um pouco de medronho mel.
Tudo é servido em pratos desenhados pela chef e materializados na Olaria Paulo & Inês, em Boavista dos Pinheiros, no vizinho concelho de Odemira. Assim como copos de medronho. Os guardanapos foram feitos a partir de tecido cortado e cozido por uma costureira de Porto Covo.
“Este é o restaurante em que estou mais feliz! É o meu restaurante! Construí tudo de raiz e a carta fui eu que fiz, sem qualquer condicionante. Mas trabalho muito mais do que em qualquer outro restaurante em que já trabalhei.”
A proximidade é extensível à garrafeira
“Ao fim de um ano, conseguimos criar algo que é conhecido”, apesar das dificuldades acrescidas, em relação ao panorama sanitário vivido em 2021. No entanto, “o Verão foi fantástico! E manteve-se até Novembro” As palavras são de António Moura, grande entusiasta deste projecto de restauração e da Rota Vicentina, o percurso pedestre que, somado, é uma imensa janela para o Atlântico e uma ode à Natureza. “É preciso sair, para conhecer a riqueza desta região. É um tesouro”, afirma António Moura, que, com um grupo de empresários, quer revitalizar esta orla marítima alentejana, de modo a pode ser explorada no ano inteiro, mas sem desvirtuar a paisagem, a essência deste lugar.
A determinação inerente ao restaurante é partilhada com Fernanda Lamelas, responsável pela transformação deste espaço. As cores não foram escolhidas ao acaso – o verde do lambrim simboliza a fauna local, acrescida pelas tonalidades várias do mesmo nas plantas espalhadas pelo Lamelas, enquanto o ocre das paredes representa a terra. Os tampos em madeira despojados de toalhas representam o Alentejo de sempre, autêntico, sem rodeios, como a comida de Ana Moura.
A garrafeira rege-se pela lógica de proximidade de Ana Moura, o local. “Fomos à procura de produtores num raio de 50 quilómetros”, conta António Moura, “mas, depois, percebemos que a lógica é a especificidade dos vinhos”. Deste exercício resulta a harmonização de sabores alentejanos com vinhos da região, melhor ainda, de sabores predominados pelo produto do mar, com vinhos, cujas notas de boca denotam alguma salinidade, pois as vinhas estão próximas do Atlântico.
O mesmo requisito foi tido em conta na escolha do Lamelas rosé 2021, feito a partir da casta Castelão vindimadas n’ A Serenada, propriedade vitivinícola, com alojamento e apostada no enoturismo. “Visitámos a adega e provámos vinhos com a Jacinta [Sobral]. Provei este vinho e gostei. Disse à Jacinta ‘eu quero’. A Jacinta disse que o vinho era para juntar a outros, mas insisti. Chegámos a um acordo, vendeu-me a pipa toda e cá está”, avança a chef Ana Moura sobre esta referência vínica representativa da comemoração comemorativa do primeiro ano do restaurante. “Não vou fazer obrigatoriamente todos os anos. Para mim as coisas têm de ser orgânicas. Vão acontecendo e têm de fazer sentido. Mesmo com os fornecedores, são pessoas com quem falo todos os dias e tem de haver confiança parte a parte.”
Inclua-se a aguardente de medronho, bebida emblemática no Alentejo, além de referências dos Vinhos Verdes, da Bairrada, entre outras, bem como o Vinho do Porto, o Moscatel e o Vinho Madeira, igualmente importantes para António Moura, que, depois do Verão, e à semelhança de 2021, retomará os jantares vínicos.
Durante o Verão, o restaurante Lamelas está aberto de Terça-feira a domingo, ao almoço e ao jantar. Com a chegada dos meses frios, fecha portas à Segunda e Terça-feira. A reserva prévia é imperativa através do 924 060 426.
É ir! Bom apetite!