Gravado e fotografado na íntegra com um smartphone, o trabalho do fotojornalista serviu de pretexto para uma conversa sobre a evolução das máquinas e as pessoas. Integrado no “See The World In A New Light”, a nova série de masterclasses junta a tecnologia da Xiaomi com as lentes da Leica e pretende desafiar os apaixonados pela fotografia e pelo vídeo a explorarem o mundo através do Xiaomi 14.
A apresentação do “See The World In A New Light” e duas masterclasses decorreram na passada semana em Madrid e Valência, na vizinha Espanha. Durante dois dias, os intervenientes tiveram a oportunidade de mergulhar no mundo da fotografia e da narrativa visual, guiados por especialistas do setor e por fotógrafos profissionais de rua, de retratos e de documentários, como Maurice Pehle, Javier Corso, Rui Caria, Fabien Ecochard, Emanuele Di Mare, Vasilis Makris, Anto Magzan, Dominic Nahr e Matt Stuart. Workshops, demonstrações práticas e sessões interativas, complementaram as atividades, em que os participantes puderam aprender mais sobre a arte de captar momentos com o Xiaomi 14 Series e criar narrativas através de imagens.
Das diversas apresentações, destacamos os trabalhos dos fotógrafos que representaram Espanha e Portugal:
• Comer con los ojos, trabalho desenvolvido pela chef Begoña Rodrigo, do restaurante La Salita (uma estrela Michelin e três Sóis Repsol), localizado em Valência, com o fotógrafo Javier Corso, cujo resultado tivemos oportunidade de experimentar e terá ramificações em outras regiões de Espanha e em Portugal, sobre as quais falaremos em breve;
• Mulheres de sal e sol, documentário de Rui Caria, conta a história das peixeiras da Nazaré e das suas raízes, através de fotografia e vídeo. Esta abordagem multimédia celebra as histórias individuais das mulheres da Nazaré e ao mesmo tempo uma reflexão sobre a passagem do tempo e a evolução cultural da região.
Este trabalho foi o ponto de partida para conversas descontraídas com Rui Caria sobre a evolução das máquinas e as pessoas.
Das câmaras analógicas às câmaras digitais e agora os smartphones. Até onde é que pode ir a evolução da máquina fotográfica? Na verdade, acho que já não tem muito por onde evoluir. A evolução dos equipamentos e da tecnologia está tão vertiginosa que aquilo que achamos já conta pouco. Não sabemos do que vamos necessitar a seguir para tirar fotografias. Há um mínimo que é preciso para tirar uma fotografia: um equipamento de gravação da imagem e faça a cristalização daquele dado momento no tempo e no espaço. Para isso, basta um sensor e uma objetiva, e isso está esgotado, penso eu.
Ainda é possível melhorar as objetivas? Também não sei se se pode. A dada altura, o olho humano já não tem capacidade para ver tanta qualidade. Na televisão, por exemplo, já vamos em 8k e há pouco li acerca da possibilidade de gravar em 18k em cartões com capacidade para 16 minutos! Parece apenas uma questão de competição entre quem faz melhor, mais do que as necessidades.
Atualmente, quais são as diferenças entre as câmaras fotográficas, ditas normais, e os smartphones? Já não há diferença ou nota-se cada vez menos. Já não há aquele vazio que havia entre um telefone que tirava fotografias e uma câmara fotográfica. Agora não são os telefones que tiram fotografias, são as máquinas fotográficas que servem para telefonar, e isso é espantoso.
A transformação da tecnologia é tão rápida, que podemos sentar-nos apenas a ver a evolução, que, a dada altura, vai ser tão imediata, que, se calhar, estamos a almoçar ou a jantar e quando vamos tomar o café já foi criado mais um equipamento novo. É interessante, mas não sei se vai trazer grandes benefícios para o trabalho que produzimos hoje.
Qual a tua opinião em relação às plataformas de partilha de fotografias? As plataformas de partilha de notícias, de histórias ou de documentários que hoje se conhecem podem vir a ser outras amanhã. Não sabemos que volta levará a fotografia.
[voltaremos a este assunto mais adiante, mas, por agora, tivemos uma pequena interferência da Inteligência Artificial (IA), que nos levou para outro caminho]
“Espero que seja sempre necessário espreitar por um objeto para fotografar e que sejamos nós, os humanos, a decidir o que vamos fotografar.”
A IA é um processo muito curioso, no qual tenho mais expectativa do que medo, porque por muito que uma máquina consiga criar alguma coisa em termos de fotografia, nunca é uma criação. É sempre uma recriação, uma vez que essa máquina está a recolher dados de outras pessoas. No entanto, isso vai trazer algumas consequências, que, no futuro, vão dar origem a novos empregos, sobretudo para verificações de autenticidade de fotografias. Haverá certamente pessoas ou máquinas a verificar a autenticidade. A IA é incrível, mas nunca vai poder tirar uma fotografia ao que está a acontecer no momento. Os humanos têm de estar presentes no processo.
Trata-se de uma evolução muito rápida. É verdade, foram anos e anos, e, de repente, em cinco anos, fazem-se telemóveis a fotografar, como se fossem câmaras fotográficas. Depois, imprime-se a fotografia no papel. Este é o processo mais antigo que existe, ou seja, mistura-se o mais moderno com o mais arcaico, já que o papel é única plataforma ou sistema de media que vai resistir a um apagão eletrónico ou a uma tempestade solar.
Impressão em papel? Explica isso melhor. Imprimir é muito importante. Independentemente da ferramenta com que fotografamos, é a única coisa que nos mantém humanos em termos arqueológicos. Imagina: daqui a 125 anos não está cá ninguém. Somos sete biliões e vai tudo. Há uma tempestade solar, que apaga a eletrónica toda, isto são só eletrões e se uma radiação electromagnética invade isto, toda a informação armazenada não passa de um pisa papéis de um momento para o outro.
Nunca fotografámos tanto como agora, mas para onde vão ou ficam as nossas memórias? Onde estão as nossas vidas? Estão em discos, estão nas nuvens. O papel também se pode rasgar, mas enterro no chão e daqui a 400 anos um arqueólogo vai escavar e diz: “olha, esta malta tirava fotografias no século XXI!” Se, daqui a uns anos, vier um arqueólogo e nada se fizer, ou seja, se não tivermos cuidado com a manutenção da escrita no papel e das impressões fotográficas, os arqueólogos vão achar que nós, no século XXI, não comunicávamos. Não escrevíamos cartas de amor, não fotografávamos ninguém. Essa não é a verdade. Nunca fotografámos tanto como agora! Há triliões de imagens a entrar diariamente na internet. Isto é assustador! Vamos ficar mal vistos perante os futuros arqueólogos, que vão considerar que éramos humanos desligados, mas não somos. Não temos é provas!
As provas que ficarem são as que vão prevalecer. Chegar ao papel é curioso. De uma câmara de película passámos para uma câmara digital, e, depois, para um smartphone, que também é digital. Muda-se a forma, a ergonomia e a lógica de trabalho, mas esta evolução toda pode acabar no papel.
“Não deixa de ser interessante pensar como é que isto cresce tanto, para, depois, recorrermos ao papel.”
São reflexões muito curiosas e interessantes. No fim, vão ser sempre precisas pessoas para fazer as coisas, vai ser precisa a câmara, seja em formato de telefone ou outro, uma vez que as pessoas precisam de comunicar e criar uma memória coletiva. Se gostam de comunicar visualmente comuniquem, porque é outra forma de falar.
O que há a dizer acerca da qualidade da máquina? Fotografar com um smartphone tem mais qualidade? Isso não se coloca assim. No entanto, vi impressões de dois metros do smartphone e questionei-me se as fotografias tinham mesmo sido tiradas com um smartphone. Há ainda um grande espanto com a qualidade dos smartphones.
Quais as vantagens de fotografar com um smartphone? São físicas e mecânicas. São a portabilidade e a facilidade de colocar o objeto onde uma câmara não é tão facilmente colocável, e isso pode ser um novo fator de criatividade. Outra situação em que um smartphone pode ser útil: imagina que estou a fazer um trabalho documental num barco, com pescadores. O espaço é apertado e não nos podemos mexer muito, há o risco de a câmara cair ao mar. Em vez de estar a gastar dezenas de milhares de euros em equipamento, uso o smartphone. Na curadoria coloco umas entre as outras e não se nota a diferença.
É uma vantagem natural ter um objeto mais pequeno e mais moldável num espaço diminuto. Não acrescenta qualidade, mas também não compromete o trabalho final.
“A desvantagem é recebermos uma chamada a meio de uma fotografia, mas isto só acontece se nos esquecermos de colocar em modo voo.”
Fotografia ou vídeo num smartphone? A fotografia é mais fácil. O vídeo tem requisitos técnicos mais complicados. O vídeo é a artilharia pesada da comunicação visual, ponto final. Há fotógrafos que ficam zangados comigo quando digo isto. Acham que o trabalho que fazem é o mais importante do mundo. Certo é que com o mesmo equipamento é possível fazer quase tudo e, neste momento, com a mesma qualidade. Eu já produzo televisão com um smartphone há mais de duas anos. Não dá para fazer tudo, mas a maior parte das “notícias do dia” ou o que está a acontecer é uma grande ferramenta. Quando o conteúdo é mais importante do que a forma.
Para fazer um filme, também é possível, mas são necessários alguns acessórios, como microfones ou iluminação. E tempo! Há smartphones que já filmam em 8k. Mesmo que o produto final seja para ver em HD, a grande quantidade de dados permite fazer o crop ou zoom sem perder qualidade. Tudo isto é muito interessante, porque um só equipamento permite criar trabalhos multimédia, tal como o que fizemos na masterclass da Xiaomi, em que usámos a fotografia e o vídeo produzidos com o mesmo equipamento.
O resultado é multimodal. Posso colocar as fotografias numa parede, num ecrã de computador, numa rede social ou publicar num jornal, mas também posso colocar um vídeo ao lado da exposição das fotos colocadas na parede. O vídeo conta a história, tem som, tem os entrevistados a falar na primeira pessoa e isso enriquece o trabalho, que tem mais possibilidades de comunicação.
Voltando à questão da partilha, quais as consequências desta democratização da fotografia, tendo em conta a facilidade de publicação através das redes sociais? Confunde-se muito o gostar de tirar fotografias com o gostar de mostrar fotografias. Felizmente, para os profissionais, a maior parte das pessoas gostam de mostrar fotografias e isso faz com que invistam mais tempo em mostrar do que em aprender a tirar.
A concorrência é cada vez maior e melhor, mas mesmo que toda a gente tenha uma máquina fotográfica no bolso, nem todos são fotógrafos. Nos últimos 20 anos é mais difícil sermos reconhecidos na fotografia. Há 60 anos havia 20 ou 30 grandes nomes da fotografia. Hoje há 20 numa rua. Há muita gente a querer ser fotógrafo e a fazer muito bem fotografia.
Mesmo de forma amadora? O amador é o que ama, é aquele que faz com o coração. Eu não aceito que alguém que se diga amador de fotografia fotografe sem jeito ou não saiba fotografar. Se o é, se calhar ele é o profissional que tem de ganhar dinheiro e tem de fazer mais depressa. Não pode estar à espera do sol do início da manhã ou do final da tarde, porque ele tem de fotografar ao meio-dia, quando está a acontecer. Poder sair ao fim do dia quando está a melhor luz, a chamada hora dourada, é um luxo podermos escolher essa pequena hora para trabalhar.
Um grande fotógrafo é aquele que lida com o que tem da melhor maneira possível em qualquer local e em quaisquer condições. Esse trabalho pode não encher o olho a muita gente, não é um trabalho com o fator “uau” – que às vezes também é perigoso na fotografia –, mas é um trabalho que informa, documenta, mostra como é o trabalho do fotojornalista. A notícia não espera. Há pouca reflexão nestes campos sobre o que é ser amador ou profissional. Há poucas profissões que precisam do “sufixo” profissional. A necessidade de se arranjar estas defesas na área de trabalho da fotografia acontece, porque é muito democratizada. O que é democratizado é inseguro, já que toda a gente pode fazer.
E porque não? Se fizerem bem, ótimo. Adoro ver trabalhos novos, gente nova a fazer bem. Há miúdos bastante jovens a começar na fotografia e concursos que procuram novos talentos. Acho isso interessante. Está tudo fotografado, o mundo está documentado, só falta documentar de outras maneiras. Para isso, às vezes, é preciso que haja mentes mais frescas, mais novas, por vezes, inocentes.
Quem não tiver jeito, tem de procurar outra coisa. Isto não é um trabalho assim tão espetacular. Há um certo romantismo à volta do ser fotógrafo perfeitamente mitológico. É um trabalho de privações, sem hora para jantar ou ir ao cinema, sem família. Os fotógrafos também tentam tirar partido desse romantismo, para se idolatrarem e aumentar os egos, o que é inerente ao ser humano. Costumo dizer “tenho um carro de dois lugares, um é para mim e o outro é para o meu ego”. É importante sentirmo-nos bem e gostarmos do que fazemos.
Fala-nos do projeto ligado à Nazaré, documentário “Mulheres de Sol e Sal gravado na íntegra com o novo Xiaomi 14 Ultra. Na primeira série de três episódios do ano passado, quando surgiu o convite e me perguntaram onde é que eu queria fazer, eu respondi logo: Açores ou Nazaré.
Decidimos todos ir para os Açores e acabou por ser feito na Terceira, a ilha onde vivo. Apesar de saber que podíamos fazer um grande trabalho, era tudo uma novidade – fazer uma masterclass em vídeo com um equipamento móvel de uma marca relativamente jovem que está a apostar muito na fotografia. Houve um conjunto de desafios e várias coisas podiam não correr bem, mas, pelo menos, a paisagem estava garantida.
Correu muito bem ou, pelo menos, foi essa a opinião de quem viu e entre os pares. Falou-se mais a um nível conceptual do que técnico, e esse foi um dos meus requisitos. Por norma, não dou workshps. Não concordo com os modelos que existem, mas não me incomoda fazer conversas sobre a importância da fotografia e da comunicação visual. Pensar essas coisas é a minha paixão.
“Nesta segunda edição, contámos a história das mulheres da Nazaré que trabalham o peixe, uma profissão que vai desaparecer em breve. As mulheres têm alguma idade. Por exemplo, a D. Maria Adelaide, uma das pessoas com quem falámos, tem 86 anos. As novas gerações não querem renovar aquele trabalho, que é bastante duro.”
Dormimos muito pouco tempo. Em quatro dias, dormimos oito horas, porque às 05h00 da manhã as peixeiras vão buscar o peixe ao armazém e preparar a carrinha, para levarem o peixe fresco às aldeias próximas de Leira, às pessoas que recebem o peixe de roupão ou de pijama. É a primeira visita do dia. Isso é interessante. Para que as coisas evoluam, outras vão-se perdendo. Portanto, é de registar esses momentos. É um trabalho que toca nas várias ciências sociais, como a antropologia ou a sociologia.
A Fatinha da Nazaré, filha da Dona Maria Adelaide, uma mulher de 64 anos, e que desde 1972, ano do meu nascimento, vai distribuir peixe. Primeiro ia com a mãe. Hoje, vai entregar o peixe sozinha aos amigos. Diz que não tem clientes. É um trabalho duro que gostava de registar, já que nasci na Nazaré. Sempre vi aquelas mulheres e sempre me intrigou aquela paixão pelo peixe, e a forma como as peixeiras falam disso.
É a memória futura, deixar alguma coisa para quem vier. Há imensos registos, não sou a única pessoa a fazer isto. É uma interpretação, talvez mais uma, mas cada um faz à sua maneira. Cada um tem as suas vivências, tal como tem as suas audiências. Os fotojornalistas, os documentaristas, as pessoas que comunicam visualmente estão a ser editorializados – uma palavra inventada à pressa – pelas redes sociais. Quase já não há necessidade de órgãos de informação. As audiências vão direto aos autores. É um jornalismo individual, focado na pessoa e na confiança. Diria que isto é transversal a todas as áreas.
Veja aqui os três episódios
No final de maio, haverá uma masterclass presencial lecionada pelo Rui Caria na Leica Store Porto, com lugares limitados.