À conversa com John Mercy

Com o motivo perfeito na mão, uma emboscada foi traçada para levar ao banco dos réus o larápio de ouvidos John Mercy. Já com um bom manancial de músicas editadas, o réu reincide no crime, trabalho após trabalho: fazer-nos reféns da sua veia criativa, da sua música. O motivo para a emboscada? O assalto programado aos ouvidos da plateia do Festival Lux Interior, no próximo outubro.

John Mercy é o alter-ego de João Rui, mais conhecido como o vocalista e multi-instumentista da banda conimbricense a Jigsaw. Com quase duas décadas de carreira nesta banda, os ambientes musicais e particularmente o timbre da sua voz foi por diversas vezes comparada a nomes como Leonard Cohen, Nick Cave, Tom Waits. Nos últimos anos tem estado também ligado à parte da produção musical em estúdio e já conta com Mistura e Masterização de mais de 60 títulos entre Álbuns EP’s e Singles. Desde o rock dos Twist Connection, Dean Wareham (Luna), Legendary Tigerman, D3O, Selma Uamusse, From Atomic, Mancines e até à electronica dos Ghost Hunt, são já diversos os discos que lhe passaram pelas mãos. 

Foi também convidado pelos herdeiros de António Variações para adaptar alguns dos seus temas mais emblemáticos para inglês tais como “Estou Além”, “Canção do Engate”, entre outros. Tem participado também em diversos projectos musicais, tanto como vocalista como instrumentista tais como Rita Redshoes, Belle Chase Hotel, Animais, Arthur de Faria & Seu Conjunto, Mancines, The Twist Connection, Victor Torpedo, Uniform, Animais, Pedro Renato e Raquel Ralha, Pedro e os Lobos, The Millions, Wipeout Beat, Tracy Vandal entre outros.

Em 2020 avançou com a sua carreira a solo sob o nome de John Mercy, com o qual já conta com diversos singles em vinil e dois álbuns de longa duração: The Murder Of Harry e West of The American Night; e agora conta com um mais recente – junto com Pedro Renato e que será usado como alibi (à frente entenderão) – onde musica duas curtas de Charlie Chaplin – The Immigrant & The Vagabond.

Cremos, assim, ter material suficiente para levar ao banco dos réus o suspeito John Mercy para o confrontar com uma inquirição Mutante. Foi este o humilde resultado de um Processo que teria tanto mais para ser esmiuçado.

I – O Suspeito

John Mercy. Heterónimo, Alter-Ego, Cognome, nada disto.
Para darmos abertura a este processo criminal, quem é John Mercy?

JM: Não tenho nada a declarar. Contudo, se tivesse que o fazer, diria que é um afastamento necessário de mim que me torna mais próximo do que eu poderia estar. Sempre me agradou a ideia de poder escolher o nosso nome da mesma forma como escolhemos o caminho que nos leva aquilo em que nos queremos tornar. John Mercy começou por ser um personagem de uma música que comecei a escrever há anos – e nem sequer era o personagem principal da canção, mas era ele o elemento que tornava a primeira personagem mais real – como se ele a legitimasse pela sua existência. À semelhança de outras canções que não saíram do registo de esquiço ou promessa, essa cena onde este nome surge pela primeira vez foi ficando para trás. No entanto, o nome e a ideia dele permaneceu – e já que na escrita eu tento criar uma distância entre mim e as personagens que habitam as canções de forma a poder estudar as suas razões com um olhar mais critico, então porque não acrescentar a agência deste nome que me permite estar mais próximo desse processo de criação sem o punir tanto com a minha identidade.

Como e quando se constrói esta tua nova identidade, na música? Bem sabemos que, como Mr. E. A. Poe diz, “There are some secrets which do not permit themselves to be told.” Todavia, relembro-te que isto não é uma conversa. É uma abertura de Processo.
JM: Há muitos anos também. A primeira vez que o usei foi quando estava a registar algumas canções na SPA e me disseram que não podia usar apenas a designação “João Rui” porque já havia alguém registado com esse nome. Quando perguntei se poderia então ser com um pseudónimo confirmaram-me que sim e a partir desse momento ficou pela primeira vez registado a ligação ao nome. Quando mais tarde a Tracy Vandal começou a trabalhar no seu primeiro trabalho a solo, o EP “The End Of Everything”, no qual participei na composição das músicas, a ideia seria esse trabalho ter sido editado já da mesma forma que o “Midnight Presents”, mas acabou por ficar adiado até ao lançamento deste último.
Caro Júri, temos o Suspeito/ Réu decifrado. Actua sob o pseudónimo de J. Mercy. Prossigamos.

II – O Crime

Dois álbuns de originais: “The Murder of Harry” e “West of the American Night”. Dois álbuns com duas géneses distintas e, consequentemente, a estética também. O primeiro é total liberdade criativa, sem rédeas, sem limites, cremos. O segundo, parte da incontornável obra de John Kerouac “On the Road”, e cria um cenário musical para esta obra a partir de um desafio que foi lançado pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra.

Em qual dos “crimes” te sentiste mais confortável? Naquele que és mafioso a mando de ti mesmo ou naquele em que és criativo contratado? É possível fazer esta comparação? (Aproveitar para um warm-up de uma argumentação final, caso necessária).
JM:
Há uma grande diferença, naturalmente, na génese do trabalho, mas o desafio que me foi lançado pelo professor Osvaldo Silvestre, com a chancela da FLUC, era criar uma espécie de paisagem sonora para a obra e que inicialmente recusei com base no meu argumento da validade artística que esse projecto teria para mim. No entanto, após grande insistência, pedi-lhe uns dias para pensar no assunto e perceber como eu me poderia encontrar nesse projecto – e ao fim de alguns dias, enviei-lhe um esquiço da primeira canção do álbum (Holding On) e expliquei de que forma o poderia fazer porque apenas nesse formato de canção e de criação de um álbum que sobrevivesse à conferencia dos 100 anos de Kerouac por si organizada é que eu poderia aceitar o desafio. E foi assim que se lançou a primeira pedra desse projecto. A grande diferença então entre um álbum e o outro é que este do Kerouac é muito mais simples do que o Harry. Isto porque a narrativa do On The Road já está criada; a razão de existência dos personagens e os seus motivos estão definidos – o trabalho neste caso é o meu processo de interpretação da obra e encontrar as canções dentro dessa narrativa. Levou a um grande trabalho de estudo não só da obra mas também da linguagem específica da época e das possíveis razões invisíveis dos personagens para as suas acções e motivos. Obrigou inclusive ao estudo da fauna e da geografia de alguns dos locais onde a narrativa se desenrola. Por exemplo a canção “A Home in The West” que a Raquel Ralha canta comigo foi um desses casos em que, por ser tão específico o local da narrativa, quando a estava a escrever tive que estar constantemente a valer-me de um mapa topográfico do terreno para não cair em nenhum erro geográfico, para além das espécies animais e vegetação. Pode parecer estranho mas se não o fizesse poderia ser o equivalente a situar a narrativa de uma canção em Coimbra sem ter conhecimento da cidade e escrever algo como “o personagem X  subiu da torre na universidade até à praça 8 de Maio” – e assim lá se ia o willing suspension of disbelief e o leitor não me iria acompanhar com a mesma fé no propósito do personagem que lhe estava a apresentar.
Mas esta parte da escrita da canção é a parte do trabalho de pesquisa – e que acaba por ser a parte menos complicada porque já sabemos atrás de que diamante estamos a correr. Um pouco como afirmava Michelangelo que o trabalho do escultor era o de libertar a forma natural que nascia com a pedra. Neste momento é apenas uma questão de usar as ferramentas correctas para libertar essa imagem – e que envolve, claro, ainda todo o processo criativo. Mas aquela primeira centelha já lá está – que é a grande diferença, como perguntaste, para o Murder of Harry, em que se parte do caderno em branco onde as personagens ainda não existem e a narrativa não conhece ainda o seu motivo e há a necessidade de o criar. No entanto a partir do momento que se inicia esse processo de criação da identidade do álbum onde de facto há total liberdade criativa, parte dessa liberdade é usada para criar rédeas e limites a essa mesma narrativa de forma a criar alguma ordem e coesão na obra que se está a criar – mas isso assim o entendo porque vejo os álbuns como livros, e cada vez mais não como obras encerradas em si, mas como promontórios que se escapam do passado e permitem que as personagens de obras sequenciais (ou não) dialoguem entre si – em verdade, como se elas próprias fossem um personagem com um passado do qual não se alijam e que também é responsável pelo que são hoje.
Quanto ao maior ou menor conforto na criação destes dois álbuns une-os mais o desconforto que me traz a não criação e que me leva a abraçar estes projectos independentemente da sua génese – como se fora pele de cobra da qual ela tem de se libertar: não por opção mas porque assim tem que ser.

Para quem (ainda) não te conheça, quem é o malfadado Harry assassinado? Que narrativa nos queres dar?
JM:
Boa pergunta. Foi uma questão com a qual debati quando estava a preparar o lançamento do álbum e que decidi fazer  de forma diversa do que havia feito até então com os álbuns de a Jigsaw em que de certa forma, nos comunicados de imprensa e entrevistas, eu explicava do que se tratava a narrativa e oferecia o segredo ao leitor. Mas como neste caso o conceito do álbum assentava no romance policial de Poe e Dostoyewsky, então eu decidi que iria manietar a minha vontade de correr ao lado da obra para a explicar e entregar a quem a quisesse receber. Assim, consultei diversos livros deste “género” para saber afinal quanto eu poderia dar sem perder. Portanto, a narrativa que quero dar continua a ser a mesma do dia do seu lançamento: “Ao longo das páginas deste álbum o leitor é desafiado a descobrir quem afinal matou Harry – e as descobertas ao longo da narrativa não são sempre o que parecem.”

E no embalo, a obra de Kerouac que musicas era algo que te era especial, fácil de entrar nela porque já a conhecias bem ou exactamente o oposto?
JM
: A obra já me era muito familiar, mas a alegria das obras intemporais, como o caso do On The road – e nota que podendo ser contextual e necessitar também de ser compreendida nesse prisma não quer dizer que não permaneça intemporal, permitem que cada visita que lhe façamos seja diferente. Nós próprios, porque não somos os mesmos de há 5, 10, 20 anos, quando voltamos a entrar nestas obras levamos connosco outros olhos – e mais se soubermos ir guardando a luz do conhecimento e lhe regressarmos com a mesma vontade e fome de as devorar. Portanto muito mudou desde a primeira vez que li a obra – de tal modo que quando lhe lancei as garras desta vez, as familiaridades e afabilidades que poderíamos partilhar ficaram à porta.

Que obra “jamais” musicarias e porquê?
JM:
Nada me ocorre neste momento. Neste âmbito, “Jamais” é uma palavra demasiado forte para o tão pouco tempo que cá estamos. Note-se, no entanto, que com pouco esforço rapidamente me ocorreriam diversas obras que não tocaria com um varapau, mas porquê fechar já a porta ao desconhecido?
Certeira resposta. Larápio auditivo de excelência nunca diz nunca.

III – Hora e Local do Crime

Aqui, vamos por pontos rápidos e directos, pois queremos mesmo que não haja dúvidas no momento da sentença.

Local – Onde é que te sentes mais confortável para esgalhar tramas musicais? Há algum pedaço de mundo onde digas “ah sim! Aqui é o meu reduto, onde faço corar qualquer risco original de Agatha Christie.” E já agora, Este ou Oeste?
JM:
Não há melhor local do que aquele onde estamos no momento em que estamos. A musa é fugaz e não perdoa a fraca memória. No desvario o Este por vezes torna-se Oeste e o Norte noutra coisa não oposta.

Hora – A noite é mais profícua para afinar as armas do crime ou ser um larápio dos nossos ouvidos é algo que se é facilmente de noite e/ou de dia?
JM:
A questão horária merece igual tratamento que o local onde se avança em direcção a uma ideia. É absolutamente indiferente. Mais importante para mim que o local e a hora é a consistência na caça. Saber que todos os dias desde o momento que te levantas que estás a pensar nessa ideia. E a ausência de uma resposta a essa ideia consome-te e por isso no dia seguinte voltas a levantar-te a pensar nela e a urdir formas de a concretizar. E antes de te deitar é essa a última preocupação antes de adormecer. Neste sentido, então qualquer local e qualquer hora são bons momentos para a criação. Já registei em áudio ou papel mais de uma vez ideias para futuras canções, que apenas anos mais tarde produzem os seus frutos. E apesar de às vezes terem um andar trôpego ou desalinhado, eu vejo nelas a centelha do que poderão vir a ser e vou guardando e acumulando. Mais tarde, levo-as comigo e vou lapidando até definir com nitidez o diamante que vi nelas.

Reparem como o réu/ suspeito se esquiva do local e da hora. A mestria é isto, caros leitores, a arte de nos ludibriar a mente enquanto solta a voz e os acordes de uma guitarra para o assalto. Bravo!

IV – Armas do Crime

Vocals, Acoustic & Electric Guitars, Piano, Banjo, Mellotron, Hammond B3, Bell, Wurlitzer 200A, Electric Harmonium, Claps, War Drum, Tambourine, E-Bow, Autoharp, Sound Design, Piano, Bass, Mellotron, Vox Continental, Bateria, Rhodes Bass, Optigan… Devem-nos ter escapado alguns.

Poderias ser um larápio de ouvidos mais minimal, todavia é este o cardápio de armas que usaste/ usas para nos fazer reféns e nos conduzires a uma sentença sem espinhas.
Vamos complicar o julgamento e… é possível para cada uma das armas justificar o que te trouxe cada uma no enriquecer de cada facada, perdão, de cada música dos dois álbuns?
JM:
São bem mais os instrumentos que uso. Alguns deles estão agrupados. É complicado especificar o que cada um traz porque teríamos que ir música a música e explicar no contexto da música o que cada um está lá a fazer porque nada está ao acaso. No entanto, por exemplo no caso do West of The American night, eu utilizei mais técnicas de mistura próximas da época do livro e também os instrumentos que existiam na época – aliás, mesmo no processo de criação das músicas eu obriguei-me a manter-me abaixo do tempo máximo permitido num vinil para isso mesmo, que são os 44 minutos – e mais ainda, porque cada lado o vinil apenas permite 22 minutos máximo e as músicas são sequenciais em relação narrativa do livro e não as poderia colocar num lado A ou B conforme melhor coubesse em termos de tempo, então obrigou-me a outra imposição na delimitação das músicas. No caso do Murder of Harry não havia esta determinação de me manter fiel a uma época, ainda que os sons que mais me apaziguam a fome criativa não estejam longe desta. Ainda assim, há casos exemplares do uso de determinado instrumento como por exemplo do War Drum que apenas usei na canção “That Lonesome Lad” e que tive que andar à procura em registo audio e vídeo antigos dos nativos americanos do som de um tambor de guerra e não o som que foi depois popularizado por um Hollywood pouco preocupado com o rigor histórico. Acompanhando a história e o momento em que a canção e a sua letra eu espero que se compreenda o porquê do seu uso.

V – Cúmplices

Que se apresentem os cúmplices no traçar do crime: Chris Eckman; Carla Torgerson; Becky Lee Walters; Kaló (Carlos Mendes); Pedro Antunes; Tracy Vandal; Raquel Ralha; Susana Ribeiro; Angel Carmona; Sérgio Costa; Pedro Renato; Bonnie Blossom; Laurent Rossi e Victor Torpedo.
E que se acrescentem/ reforcem o que o praticam, quase religiosamente, ao vivo: Luís Formiga; Miguel Cordeiro; Pedro Antunes; Raquel Ralha; Susana Ribeiro; Tracy Vandal e Victor Torpedo.

Isto já é algo ao nível de uma máfia do rock conimbricense e já és na surdina um Godfather ou calma lá que é só mesmo um bando de “larápios” de refinada estirpe criativa que te permitem ser maior?
JM:
São todos músicos cujo trabalho respeito imenso e com os quais tenho tido o imenso privilégio de comungar na criação ou interpretação musical. Nenhum deles está aqui à toa porque tenho a completa confiança no seu discernimento musical. Qualquer um dos nomes que elencaste são músicos a quem entrego as minhas canções, preciosas que me são, e lhes dou liberdade total para colocarem o seu cunho e encontrarem-se nelas – Não sejamos também demasiado néscios. Claro que estando eu no papel de “realizador” não berro ao actor/actriz “acção” e venha o que vier. Primeiro explico muito bem o que é a canção e quais os motivos dos personagens que estão a interpretar (por exemplo na parte das vozes), ou no caso instrumental qual o papel que representam – são os meus verdadeiros confidentes aos quais revelo quase a totalidade do mecanismo que opera a canção específica para a qual os convido. Mais depressa diria que são músicos extraordinários que me têm agraciado com a sua bondade e partilha do que lhes chamaria um grupo de bandidos – no entanto, se fosse para ir assaltar um comboio não me ocorreria melhor quadrilha.

Tu e os teus cúmplices, citando Kerouac, “We agreed to love each other madly.” nesta estrada do mundo sonoro? Amar perdidamente no sentido de admirar perdidamente, claro. Já são os eternos comparsas do crime…
JM:
Creio que sim. Bem definido – o Kerouac tem um talento nato para encontrar em poucas palavras lâminas bem afiadas que deixam as suas marcas. Portanto não encontraria melhor expressão: “We agreed to love each other madly.”

Ficou a faltar algum? Há ainda alguém que um dia gostarias juntar ao teu leque de cúmplices, num futuro trabalho?
JM:
Faltam muitos. Tantos quantos segundos há num dia. Há um que me escapou por pouco que merece destaque. O Paco de Lucía. Na altura, em 2014 estávamos (eu o Jorri em a Jigsaw) a gravar o álbum No True Magic que já tinha começado a escrever dois anos antes e uma das canções que estávamos a gravar e que ainda não foi editada “The Old Acrobat”, dada a sua base e a sua natureza ocorreu-me que a pessoa ideal para gravar o solo seria o Paco. Como na época passávamos muito tempo a tocar ao vivo em Espanha e tínhamos lá uma agência (a GrocDog) a Elena (a nossa agente em Espanha) estava a tratar do processo e o vento estava de feição até ao dia em que recebi o telefonema dela a dizer que tinha acabado de saber que ele nos tinha deixado de vez. E faz falta nesse leque. Ficamos mais pobres.

VI – Alibi

Dizem que foste ao cinema com o Pedro Renato ver Chaplin… melhor, o convite foi endereçado pelo Cineclube Fila K. Melhor ainda, levaste de arrastão alguns dos cúmplices supramencionados. Ainda mais refinado, foram duas curtas de Chaplin. Se sabemos que isto só foi editado depois dos outros dois álbuns, pois claro que sim, sabemos.
Mas que “julgamento” seria este sem uma manobra de diversão que encaixa na mouche e vem mesmo a calhar. Por isso, agradecemos a colaboração nesta ficção Mutante. “The Immigrant & The Vagabond” o alibi numa linha temporal à frente – hard sci-fi at your service.

Criar um mundo sonoro para o que era mudo. Aqui, não só o trabalho é uma encomenda como vem com uma estética visual definida. Prende mais a criatividade ou torna, de certa forma, o criar em algo mais exigente, mais desafiante?
JM:
Este é um álbum muito particular, mas cuja abordagem da minha parte foi semelhante ao do Kerouac. O pedido foi endereçado para musicar dois filmes do Chaplin. O Gonçalo da Fila K, na época do convite, estava a apresentar um ciclo de cinema mudo em que convidava dois músicos cuja colaboração aparentemente improvável iria resultar num momento interessante ao vivo.  E teve a ideia de me juntar com o Pedro Renato para este efeito. A ideia, mais uma vez seria a de criar umas paisagens sonoras para o filme e musicar ao vivo estes dois filmes. E, naturalmente, à semelhança do convite do Kerouac, recusei de imediato porque não me revia nesta forma musical. No entanto o Pedro Renato é bastante convicente e foi argumentando comigo que não era má ideia e como é que poderíamos criar essa banda sonora

Não estás só no alibi, claro. Vens com Pedro Renato. Foi o parceiro inevitável para dar estética sonora a Chaplin. Como foi traçada esta união e avanço para processo criativo?
JM:
Não era o parceiro inevitável, mas era o obrigatório neste caso (risos) porque a escolha deste emparelhamento não foi nossa. O Gonçalo pensava que nós nem sequer nos conhecíamos, no entanto já nos conhecíamos há mesmo muitos anos e desde a gravação das primeiras músicas que vieram a formar o Devil’s Choice com a Raquel Ralha que gravámos juntos que já trabalhamos em dúzias de projectos e basicamente o Pedro está no estúdio comigo dia sim dia não. E como já tínhamos falado algumas vezes de fazer algo em conjunto esta parecia uma boa oportunidade. Então foi só depois de definirmos que iriamos criar uma banda sonora que sobrevivesse a esse concerto é que avançamos para o trabalho. Isto porque noutras ocasiões em que musicamos filmes no passado achamos que são eventos interessantes mas que deixaram pouca memória – então decidimos ir pela estrada mais tortuosa e lançamo-nos à criação da banda sonora dos dois filmes em que cada música respeitaria a cena respectiva e em que a nossa palavra agisse no silêncio deles, que foi muito mais interessante para nós do que a ideia que nos tinha sido inicialmente proposta.

É algo que te vês a repetir, o musicar cinema mudo, mais e mais vezes?
JM:
Não é algo para o qual saia a correr. Este foi um caso muito específico. Vejo-me a apresentar mais vezes este concerto específico destes dois filmes pela forma como foi idealizado, mas musicar filmes mudos não está no topo da minha lista. Na próxima será eventualmente um livro, na companhia, claro, do Pedro Renato.

VII – O Julgamento

A que tribunal (palco), onde nunca tenhas ido, gostarias de levar uma das tuas audiências para julgamento público?
JM:
Não me ocorre nada de repente. Ao final do dia, as pessoas são mais importantes que o espaço onde as encontramos. Já dei concertos magníficos com plateias estrondosas em salas menos que perfeitas com condições menos que interessantes e concertos frios em salas magníficas. Não tenho em mente nenhum local sagrado que me tenha o interesse cativo.
Larápio excelso, rapta ouvidos a partir de qualquer palco.

John Mercy, julgamento sem júri é impossível para quem o objetivo é raptar o sentido auditivo ou também é possível a sentença sem júri constante? Isto é, um trabalho que vive muito bem sem ser tocado ao vivo para degustação solitária, como na leitura de um bom policial britânico.
JM:
São duas experiências distintas que oferecem recompensas distintas. Tanto para quem sobe ao palco como para quem sobe à plateia e também tanto para quem está a ouvir em casa como para quem gravou a peça. Isto porque o trabalho de estúdio permite uma minúcia tal que nos autoriza a utilização de todos os recursos ao nosso dispor (como as dúzias de instrumentos) para conseguir criar aquela imagem bem desenhada e fixa no tempo e permite a obsessão na forma como é misturado e repensado vez após vez. Ou não. Também permite que em estúdio se use o primeiro take e se considere fechado dessa forma mais “espontânea” – e para o ouvinte, também tem a sua escolha a fazer: vou ouvir isto em silêncio num bom sistema de som e no espaço e tempo devido onde vou dedicar a minha atenção apenas à obra, ou vou ouvir isto para matar tempo enquanto estou no trabalho na coluna do telemóvel onde a obsessão do autor quando estava a preparar os graves do baixo simplesmente não são reproduzidos?  E ao vivo também há outros dilemas – porque se houve todo aquele trabalho em estúdio e se sabe que para reproduzir como se gravou seriam necessários ao mesmo tempo 20 músicos e só se tem a possibilidade de levar 5 ou 6 que se vão ter que fazer algumas concessões – mas nesse apurar do arranjo para que não se perca o coração da canção na sua transposição para o palco também há recompensa – e para quem ouve ao vivo tem acesso a essa janela. Mas o corpo e o seu cansaço – a limitação física pode limitar a total apreciação da obra. Ao fim de duas horas de pé a ver um concerto a capacidade de o disfrutar vai, naturalmente, diminuído.

VIII– A Sentença e a Pena

Vemo-nos chegados ao momento inevitável de todo este rol capítulos de um processo – embora tenhamos optado por saltar, conscientemente alguns pontos, sendo que as provas (algumas) se encontram espalhadas neste processo em forma de “telediscos” – a Sentença e sua Pena.
Somos mãos leves, mas acima de tudo, altamente suspeitos. Cometemos o crime de ouvir, tudo, de fio a pavio e “ah! Maldito larápio!” estamos reféns.
Assim, na Pena, só nos ocorre acabar com aquele cliché que larápios como tu não suportam como paga por vários crimes de rapto de ouvidos alheios.

Sal, we gotta go and never stop going ’till we get there.’
‘Where we going, man?’
‘I don’t know but we gotta go
.”
Jack Kerouac, On the Road

Para terminarmos, já sabes para onde vais como John Mercy? Que futuro queres alcançar com esta tua nova entidade?
E, relembramos que é a parte da sentença, logo não poderás recorrer a estas frases de Kerouac para se escapulires airosamente: “Nothing behind me, everything ahead of me, as is ever so on the road.”; “I don’t know, I don’t care, and it doesn’t make any difference.”; “My witness is the empty sky.”  A resposta exige-se que seja com nível, se quiseres a liberdade criativa assegurada na leitura da sentença.
JM:
Sr.ª Dr.ª Juíza, caros membros do júri: quando comecei a escrever esta longa defesa, esta última pergunta à qual respondo agora era já o futuro que é um passado estendido. De tal modo que estando nós a preparar o futuro e sem dar por ela, ele chega e de repente já é passado convém ter algum plano para o que se se segue. Não se entra no céu a guardar as boas acções para as concretizar no purgatório. Significando com isto que há diversos trabalhos em curso neste momento que irão ser editados (uns para mais breve que outros). Sendo que alguns estão na tal fase inicial em que estou a trabalhar ainda a narrativa e nos personagens e outros onde estou na parte de últimos retoques das gravações. Mas de forma menos etérea, teremos para breve o primeiro longa duração de originais Tracy Vandal & John Mercy cujo título ainda não posso avançar porque não é ainda a hora. Irá ser editado um apenas como John Mercy que reúne algumas das versões que tenho vindo a gravar e algumas que ainda não foram publicadas com a participação de um naipe exemplar de convidados e estou a começar a preparar outro trabalho com o Pedro Renato.
Que futuro quero alcançar? Só preciso de me livrar desta música que não me sai da cabeça.

Caros membros do Júri, vejam como o réu/ suspeito assume que já prepara novos crimes, sem tento na língua ou pudor no dedilhar. Porém, gostaríamos de dizer-vos agora o que talvez ainda não vos seja bem claro… Nunca fomos a acusação, mas sim a defesa de John Mercy – sem hesitações – pois larápios como John Mercy merecem toda a liberdade criativa por nos tornarem reféns de universos sonoros tão sólidos, tão consistentes, tão bem artilhados na história, lírica e composição. É obrigatório dar-lhe a liberdade de vos prender no seu universo criativo. Digamos que, em suma, é um larápio dos refinados e altamente recomendado, melhor, reforçamos que é absolutamente obrigatório ouvir!

Se se quiser deixar raptar ao vivo pelo som de John Mercy, é alinhar na próxima edição do Festival Lux Interior – ver programação aqui. •

+ John Mercy
© Fotografia: Bruno Pires.

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