Herdade do Peso: a identidade e o tempo da terra ondulada

O ano de 1992 marca a estreia da Sogrape no Alentejo, com o primeiro vinho produzido nesta região. Chamava-se Vinha do Monte. “Compramos uvas e arrendamos uma adega”, conta Luís Cabral de Almeida. Cinco anos depois, em 1997, “comprámos esta propriedade”. Trata-se da Herdade do Peso, localizada na Vidigueira, localidade inserida na sub-região homónima da região do Alentejo. São 465 hectares de terra ocupada por 160 hectares de vinha e 100 hectares de olival. Em relação à maior parte da restante área, a empresa está a apostar na recuperação da floresta tradicional.

Luís Cabral de Almeida, que estivera 14 anos na Quinta dos Carvalhais, localizada no concelho de Mangualde, na Região Demarcada do Dão, seguindo-se a Finca Flichman, na região de Cuyu, na Argentina, onde permaneceu por oito anos, regressou a Portugal, em 2012, para se dedicar à Herdade do Peso. “Houve um grande empurrão quando me puseram aqui a tempo inteiro”, afirma. 

Durante dois dias, a Herdade do Peso foi palco de uma reunião intensiva, com o objetivo de eleger o nome do primeiro vinho a ser produzido na propriedade. Estiveram presentes “desde a cozinheira, a Ana, até ao marketing, que era de Inglaterra, além da Mafalda Guedes”. De uma folha A4 em branco resultou uma quase infindável lista de palavras. “Como estava na altura do Papa-Figos, tudo o que havia de nomes de pássaros… estava lá tudo!” Entre muitos, constava um sugerido por Ana, a antiga cozinheira da Herdade do Peso: Terra Dobrada. Significa terra ondulada, designação figurativa da paisagem suavemente ondulada do Baixo Alentejo. 

Apresentadas as sugestões, Salvador Guedes, então presidente da Sogrape e o mentor do nome Papa-Figos, “lembrou-se do porco alentejano, que é alimentado a bolota. No marketing ajustaram para Trinca Bolotas, em homenagem ao porco alentejano”. Aliás, “quem fez os grandes nomes foi Salvador Guedes”, reforça o enólogo, que conta ainda a história relacionada com a primeira imagem do suíno desenhado a rosa. Ao deparar-se com o lapso, Luís Cabral de Almeida alertou de imediato: “vocês não sabem o que é um porco preto?”

Produzir vinho tranquilo sem madeira era um dado adquirido para Luís Cabral de Almeida, que já atuava deste modo na Argentina. Portanto, o Trinca Bolotas, cuja primeira colheita remonta a 2013, “foi um vinho um bocado disruptivo”, defende o nosso cicerone, que, naquela época, decidiu não o submeter a barrica. “Na altura, era preciso fazer um vinho deste nível, para ter volume e chamar a atenção. Foi o produto que nos deu a alavanca financeira para desenvolver o que temos agora. A marca de vinho que mais vende acima dos cinco euros, no Alentejo, é o Trinca Bolotas”, referência constituída pelas versões tinto, branco e rosé.

“Não só na Herdade do Peso, mas cada vez mais à nossa volta e em Portugal inteiro, temos cada vez menos a influência da madeira no vinho”, declara Luís Cabral de Almeida, para quem, em tempos, “confundiu-se o sabor a madeira com qualidade”. Por isso, quando o Trinca Bolotas se estreou no mercado, a recepção não foi positiva. Era “um vinho desenhado com Alicante Bouschet, para dar fruta, cor e volume de boca, Touriga Nacional, para dar frescura e longevidade em boca, e Aragonez, para fazer a ligação entre as duas castas”, argumenta. Face a este cenário, o enólogo decidiu reunir-se, ao longo de dois meses, com os comerciais, no sentido de abrir caminho a novas mentalidades. 

Segundo o enólogo, as barricas de madeira são para utilizar nos vinhos de topo, como é o caso do Revelado, do Reserva e do Parcelas, as três referências prestige wines da Herdade do Peso, “porque temos uma carga fenólica maior, ou seja, mais cor e mais taninos. A madeira, o que faz é a combinação entre as antocianinas, responsáveis pela cor, e os taninos. Quando um grande vinho não vai a madeira, a cor precipita toda”, explica. Sobre esta temática, Luís Cabral de Almeida é da opinião de que “Portugal atingiu uma maturidade vitícola e enológica, como há poucos”.

“Nos brancos, se pudermos, sem madeira, mas depende das castas”, salvaguarda o enólogo. Para submeter um vinho branco a um estágio em madeira, que confere complexidade e a longevidade ao vinho (branco ou tinto, ou outros), é preciso ter em conta determinadas características, “tem de ter uma estrutura e uma acidez forte, vibrante, senão morre. Um vinho branco tem de ser vivo e ao mesmo tempo complexo”. Mesmo assim, Luís Cabral de Almeida é da opinião de que as barricas de madeira devem ser usadas como moderação. “Mais do que isso, sempre e quando agrega algo ao vinho”. No fundo, “gostamos de engarrafar vinhos com sentido de lugar, com alma daqui”, acrescenta.

“Para fazermos vinho com sentido de lugar, vamos atrás no tempo, ao que era tradicional e ver como se pode trabalhar essa identidade”

“Para fazermos vinho com sentido de lugar, vamos atrás no tempo, ao que era tradicional e ver como se pode trabalhar essa identidade”, sublinha. O mesmo aconteceu na vinha, onde foram plantados, em 2021, 42 hectares de vinha em substituição de uma outra, com 30 anos, dos quais 10 hectares foram submetido ao sistema de condução em vaso (a planta é suportada por uma estaca, que, ao fim de cerca de 10 anos, é retirada, porque a cepa engrossou, tendo capacidade para a suportar). “Fomos mesmo ao passado”, realça, mas primeiro foi preciso fazer um trabalho aprofundado a respeito das condições edafoclimáticas (clima e solo)

Apesar desta parte da vinha de 10 hectares necessitar de mais mão de obra, porque “há uma pré-poda e a vindima tem de ser feita à mão”, exige menos rega. “Vamos poupar água e já temos uma fruta diferente”, a qual “tem de ser muito bem racionalizada para fazer os vinhos mais caros”. Simultaneamente, “a planta está mais solta, porque não está enrolada, tem o movimento rotativo e consegue produzir a fruta mais à sombra”, elucida Luís Cabral de Almeida, que exalta a diferença do vinho, uma colheita de 2024, produzido a partir das uvas vindimadas nestes 10 hectares. “É interessante, porque há nitidamente diferença.”

Portanto, dos 160 hectares de vinha em produção integrada, 42 hectares foram recentemente plantados. A rega é feita semanalmente e de acordo com as necessidades de cada casta. Em matéria de variedades de uva, fica o destaque para a Alicante Bouschet, “a grande aposta e a casta rainha do Alentejo, que nos dá fruta, cor e volume de boca”, e a Touriga Nacional, que ocupa 25 hectares de vinha e “é capaz de ser a maior mancha de Touriga Nacional a sul do Tejo”. Aragonez, Petit Verdot, Tinta Miúda, Tinto Cão e Grand Noir são outras das 10 castas tintas da Herdade do Peso. Esta lista é complementada pela Arinto, “que, hoje em dia, é fundamental”, Antão Vaz, “a casta da Vidigueira, mas tem algumas dificuldades de acidez, daí que haja necessidade de ser apanhada mais cedo”, Verdelho dos Açores, Chardonnay, Viognier e Moscatel Galego. No total, há 16 castas diferentes plantadas em 12 tipos de solos.

“A serra do Mendro faz aqui um pequeno canyon, que vai até à costa e é responsável pelos ventos frios que surgem no momento da maturação da uva”, começa por esclarecer Luís Cabral de Almeida, enquanto chama a atenção para a paisagem ondulante e o vale suave que toma conta da paisagem dentro da Herdade do Peso. O enólogo refere-se à oscilação da temperatura no verão, em que o termómetros atinge os 40 °C, enquanto, durante a noite, descem aos 16 °C, “o que permite que a planta descanse”.

“Gostávamos muito que esta complexidade e esta variabilidade da Herdade do Peso fosse sentida pelo consumidor, porque, como aqui temos terra dobrada, temos várias exposições solares.” 

Mas, afinal, como é um vinho do Alentejo? “É um vinho com intensidade de aromas e sabores E o que é um vinho na Vidigueira? É um vinho com frescura.”

Importa ainda incluir a influência da comunhão entre as várias espécies existentes Herdade do Peso afora. “São estas manchas, estes corredores de biodiversidade, que não permitem a produção de uva de má qualidade”, garante Luís Cabral de Almeida. Paralelamente, houve – e ainda há – uma forte aposta na recuperação da flora tradicional do Alentejo. “Fizemos um estudo e estamos a recuperar dezenas de plantas. Identificamos 57 espécies tradicionais do Baixo Alentejo e estamos a plantar 37 espécies diferentes”, informa o enólogo, que também nos mostra a área constituída por 60 de oliveiras milenares. A mais antiga da propriedade e quiçá do país com 3700 anos.

A primeira adega da Herdade do Peso data de finais da década de 90 do século XX. Mais tarde, a divisão do espaço entre dois blocos – um reservado para os prestige wines (Revelado, Reserva e Parcelas), “feitos sempre com uva da propriedade”, e o outro destinado para as referências Sossego e Trinca Bolotas, “com uva nossa e comprada a quatro lavradores localizados num raio máximo de 15 quilómetros” – teve a intervenção do arquiteto José Carlos Cruz e a conclusão data de 2022. 

“Uma adega, dois conceitos”, resume Luís Cabral de Almeida, onde a enologia entra em campo, isto é, onde, segundo o enólogo, ocorre a “mistura de ciência com empirismo”. A primeira é baseada numa “componente muito forte de transmissão de conhecimento e, quando há essa transmissão de conhecimento de geração em geração, estamos a falar de cultura”. A segunda prende-se com “o ato científico que o vinho tem, quer de viticultura, quer de enologia”.

A explicação do nosso cicerone converge no lado cultural do vinho, que permite “a união à mesa, que consegue criar momentos inesquecíveis, de prazer, que ficam na memória das famílias, de casais apaixonados, entre pais e filhos, e é, talvez, o produto que consegue juntar avós com netos, mas, naturalmente, para beber com moderação”, remata.

Sogrape
+ Herdade do Peso
© Fotografia: João Pedro Rato

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