Adormecidas no tempo que já lá vai, quatro casas são reerguidas através do traço de dois arquitetos e das mãos de quem sabe e, no interior, decoradas a preceito, com paixão. No Terreiro do Antunes da aldeia Lapa do Lupo. Eis as Casas do Lupo.
À chegada a Lapa do Lobo, numa manhã soalheira, cinco senhoras de idade conversam com vagar, sentadas num banco de granito, em comunhão com o casario típico beirão. Traço perpetuado pelo compasso do passado, (quase) intato, nesta aldeia do conselho de Nelas, no distrito de Viseu. Uma aldeia rica em estórias e uma lenda, que conta a existência de um lobo que afugentava os seus deste lugar apaziguador, onde os verões de antigamente, passados na casa dos avós, permanecem guardados nas memórias de infância de Carlos Torres. Falamos do mentor das Casas do Lupo, uma composição de quatro casas ainda conhecidas pelos nomes dos seus antigos proprietários – a da Laurita, a da Nascimenta, a do Cintinha e a da Ester, “adquiridas entre 2009 e 2010”, conta-nos o anfitrião.
No Terreiro do Antunes abre-se o portão, alto, verde escuro. Entramos. No terraço são dadas as saudações de boas-vindas, ao mesmo tempo que os nossos olhos contemplam o cenário em redor. Duas casas beirãs, de paredes de granito conquistam-nos sem pedir licença, pela arquitetura, que conjuga a traça original e o traço contemporâneo, da autoria da dupla de arquitetos João Laplaine Guimarães e António Gomes, pelas cores harmoniosas do passado e do presente, pelo silêncio. Ambas compõem o núcleo principal das Casas do Lupo – outrora as casas da Laurita e da Nascimenta – cujas lojas, no rés-do-chão, dão, hoje, lugar à sala da primeira refeição do dia e à cozinha de apoio, de um lado; à sala de estar, onde numa das paredes se encontra uma fotografia de Tito Mouraz, e bar, com acesso ao jardim e à piscina. Mas já lá iremos… Ao fundo, na receção, um lobo de Bordallo Pinheiro dá as boas-vindas aos hóspedes.
A decoração beirã e as galinhas da senhora Natália
Pela escada do terraço acedemos ao piso de cima, onde três galos em louça fintam o horizonte, de pé firme, sem sair de perto dos beirados; e onde as divisões do casario dos velhos tempos são quartos – cinco, ao todo –, que partilham conforto e bom gosto na conjugação de materiais e de tons, de peças de decoração e de mobiliário. “A decoração surgiu um pouco por impulso”, confessa Carlos Torres, “de Lisboa vieram velharias dos antiquários” que comungam, aqui e ali, com “móveis da casas dos nossos pais”. Nas janelas, as cortinas brancas, feitas por uma senhora da região, respeitam a tradição das aldeias.
O roteiro pelos aposentos começa no quarto n.º 1, o Verde. As camas fazem parte da infância de Maria do Carmo Batalha, mulher de Carlos Torres, mentora do projeto e responsável pelo décor deste “turismo ligeiro que foi ganhando sofisticação”, a par com o arquiteto João Laplaine Guimarães; e há móveis da casa dos pais do anfitrião das Casas do Lupo. Seguimos para o n.º 2, de dois pisos, onde as galinhas que vagueiam pelo pátio da senhora Natália, e para onde há uma janela, recebem o merecido tributo traduzidos nos padrões das almofadas e nas peças de louça com as suas formas, ou não fosse este o quarto das Galinhas.
Ao lado está a sala de inverno reservada aos hóspedes. Numa das paredes sobressai um quadro da autoria da pintora, escultora e ceramista Bela Silva, uma encomenda de Carlos Torres, que solicitou que a artista portuguesa pintasse um lobo para a sua Casa de Lapa do Lobo. “Acabou por pintar dois”, revela o anfitrião, “um está aqui; o outro está na minha casa de cá”. No lado oposto à entrada na sala sobressai a janela em forma de quadrado, que encaixa na parede, rematada por uma sacada envidraçada, deixando entrar muita luz nesta divisão da casa.
A segunda casa do edifício principal é composta por três quartos, um detalhe perfeito para quem precisa de uma pausa demorada, em família, num lugar que comunga com o paraíso. De um lado está o quarto n.º 3 ou da Escada Redonda. Com vista para o jardim e para a Serra da Estrela, no interior, impera a decoração beirã numa combinação harmoniosa com os motivos do mobiliário típico alentejano que preenchem as pequenas portas transformadas, em conjunto, na cabeceira da cama de casal; no exterior, com passagem privilegiada para a sala de inverno, está a escada redonda, em granito, de acesso ao jardim e, por conseguinte, à piscina.
Chega a vez do quarto n.º 4, o quarto Branco. Depois de abrir a porta subimos a escada até aos aposentos, alvo, assim como a casa de banho revestida a azulejo a imitar a madeira com uma patine branca. Minimalista, mas muito romântico. Que tal para a lua de mel?
Onde já foi a sala da casa é, agora, o quarto n.º 5, das Camélias, nome atribuído por causa da cameleira que existe junto à parede, do lado de fora. Contíguo aos aposentos está um outro quarto, mais pequeno e a casa de banho que, noutros tempos, era a divisão reservada ao descanso profundo.
Os galos e a art deco da casa do jardim
No jardim, as ervas aromáticas desprendem aromas que se misturam no ar, cuidando de conquistar o olfato de quem passa, mesmo os mais distraídos, curiosos em relação a intervenção arquitetónica da antiga casa do Cintinha. Com uma construção original em granito, o corpo da vetusta habitação apresenta, em redor do piso superior, placas de zinco, numa linguagem revestida de contemporaneidade, que se enquadra no cenário exterior, de traço reto e concreto, onde se encontra a piscina.
No interior da casa, fica o quarto n.º 6 ou do Jardim, com peças decorativas e de mobiliário art deco, mas o que chama mais a atenção é o biombo em madeira que faz a vez de cabeceira da cama. Em cima, estão os quartos n.º 7 ou do Galos e o n.º 8 ou da Bela Vista. O primeiro apresenta uma decoração associada aos galos – a parede exterior da divisão está forrada com papel de parede preenchido por galos, em pequena escala – e a cabeceira da cama é feita com a parte de cima de um portão de ferro. O segundo, com vista para a Serra da Estrela e para a piscina, seduz logo à primeira vista, pelo design das peças, pela decoração art deco e pelos tons eleitos, assim como pela fotografia de Tito Mouraz, à cabeceira da cama, oferecida a Carlos Torres.
Cá fora, a piscina convida a um mergulho. Por causa do calor e porque há que aproveitar o tempo para nos dedicarmos ao dolce far niente e desfrutar do silêncio da Lapa do Lobo. Aos que preferem permanecer em atividade, aconselhamos duas salas de jogos, com matraquilhos e ténis de mesa… e recomendamos que levem as bicicletas, para descobrirem os cantos e recantos desta aldeia beirã, onde a natureza permanece na sua essência, assim como a vivência dos moradores cuja simpatia é de se lhes tirar o chapéu.
Para quem o tempo não é para perder, mesmo num lugar em que os ponteiros do relógio parecem andar mais devagar, ide conhecer o parque biológico. Fica numa quinta que pertence aos proprietários das Casas do Lupo, na qual um moinho foi recuperado por um especialista nestes engenhos ancestrais, Jorge Miranda, e a envolvente paisagística recebeu o merecido cuidado; e onde é feita observação de aves. Aos mais aventureiros, informamos a existência de 11 percursos assinalados num mapa, para conhecer o património da região nas vertentes da arquitetura, da gastronomia e da arqueologia.
E, em terras do Dão, nada melhor que visitar as quintas vitivinícolas da região, como a Quinta de Cabriz e a Quinta do Cerrado, ambas em Carregal do Sal, bem como os Paços dos Cunhas de Santar e a Casa de Santar, em Santar, no concelho de Nelas. Para o almoço e o jantar. Mas há outros lugares que reservam um bom repasto. Nada como se aconselharem com quem está nas Casas do Lupo. Ou, se preferirem petiscar, basta pedir umas tapas no bar, aberto até às 11 e meia da noite.
O fim do dia é reservado ao descanso, junto à lareira da sala do bar, que nos faz sentir em casa… porque no dia seguinte aguarda-nos um pequeno-almoço pleno de aromas e sabores da região, onde não falta o tradicional – e original – Queijo Serra da Estrela. Mesmo para quem preferir a antiga casa da Ester, transformada num apartamento para família com um sótão que os mais novos vão adorar! No Terreiro do Antunes, em plena Lapa do Lobo.
A cultura de portas abertas na Lapa do Lobo
Falamos da Fundação da Lapa do Lobo. De uma outra casa da aldeia nasce um espaço dedicado à cultura destinado a todas as faixas etárias, pois nunca é tarde demais para aprender. A aposta nos jovens da terra e das escolas da região – Nelas, Canas de Senhorim e Carregal do Sal –, “que entram à vontade e sentem a fundação como um espaço delas”, diz-nos Carlos Torres, o mentor deste projeto que surgiu em 2007, tem vindo a dar frutos ao longo dos anos. Desde o dia em que a fundação começou a financiar o gap year a dois jovens, que lhes mudou – de certo – a vida, graças a “uma viagem que lhes ficou na memória”, conta, durante a qual “têm de fazer trabalho de voluntariado por países cadenciados”.
Da fundação há também tempo para sessões de cinema no anfiteatro, ao ar livre; há saraus de poesia, por exemplo, no auditório localizado no pátio atrás da casa principal, construído de raiz, e batizado com o nome da avó de Carlos Torres, Maria José Cunha. “Uma senhora muito respeitada, de uma família mais abastada, atenta aos problemas dos mais desfavorecidos”, revela Sónia Simões, a cicerone na Fundação Lapa do Lobo. O pequeno camarim, contíguo ao auditório, fica no antigo forno de lenha, do qual a pequena porta para o exterior ainda existe.
Mas há mais neste espaço multifuncional! Há bordados, renda de bilros, um atelier de música para aprender violino, guitarra, há informática para séniores, uma sala de computadores disponíveis, por cada duas horas, a miúdos e graúdos da aldeia e arredores, uma biblioteca com cerca de 1100 livros, dos quais são requisitados cerca de uma dezena por semana, e exposições no piso superior do edifício que, na altura, estava a ocupar, também, a casa ao lado.
Segundo Sónia Simões, “a fundação já se tornou uma marca, uma marca valorizada. É um reconhecimento muito grande do nosso trabalho”. Por isso não se coíbam de a visitar, pois vale mesmo a pena conhecer o que aqui é feito, assim como a reabilitação arquitetónica, quer por dentro, quer por fora, da autoria da dupla João Laplaine Guimarães e António Gomes. •