A cozinha do Avenue “possui toda a minha bagagem, toda a experiência que tive” / Chef Marlene Vieira

Dotada de sabedoria e savoir-faire, Marlene Vieira, a chef do restaurante Avenue, da lisboeta avenida da Liberdade, faz da harmonização de cores e da combinação de sabores o seu prato forte, sendo a fruta ponto assente na sobremesa, o doce final do repasto, aqui interpretado pelo Menu da Estação que, à semelhança dos demais menus de degustação, é composto por produtos da época.

Carbonara de aipo, presunto finamente cortado, cogumelos, trufa e folhas são os ingredientes principais deste prato, que seduz o palato pelo equilíbrio de sabores e, ao mesmo tempo, celebra a entrada no Menu da Estação, após o amuse bouche de salmão fumado, tempura de cenoura desidratada e puré de cenoura

A primeira relação que a Marlene Vieira teve com a comida era desinteressante.
Na altura, cozinhava-se mal. Já era difícil convencerem-me a comer e o que cozinhavam não me sabia bem. Não sei explicar… Não era capaz de comer um bife bem passado, mas comia carne crua em vinha d’alhos. Nunca gostei de comida seca mas, antigamente, diziam que tinham de matar o bicho, por isso, cozinhavam muito os alimentos. Comia ovos estrelados e pouco mais.

Porém, cedo passou a ter uma cumplicidade muito grande com a cozinha.
Quando era criança, via minha avó cozinhar, mas não me deixava ir para o fogão. A curiosidade em relação à cozinha começou quando passei a acompanhar o meu pai, que tinha um talho, na entrega da carne nos restaurantes, um mundo completamente diferente. A adrenalina, o movimento na cozinha cativou-me, pelo que lhe pedi para trabalhar num restaurante. Ainda hoje defendo que tudo o que as crianças fazem na cozinha, comem. É o melhor truque. Eu sou um exemplo disso. Descobri tanta coisa que não sabia que existia! Cogumelos. Não sabia o que eram cogumelos. Os de lata, nem pensar! Havia, mas não gostava. A questão é aprender a cozinhar os alimentos como deve ser, o que as nossas mães não sabem fazer, porque cozinham demasiado.

O vício da cozinha levou-a a ingressar na Escola de Hotelaria de Santa Maria.
Primeiro foi a curiosidade. Depois foi a paixão. Aos 16 anos fui para a Escola de Hotelaria [de Santa Maria], por três anos.

Hoje, a duração de alguns cursos é de apenas um ano e meio.
É pouco. Muito pouco. Há alunos que apanham a prática facilmente, mas não saem suficientemente bem preparados para o mundo da cozinha. Têm mais conhecimento teórico do que prático. Na prática, estão muito atrás quando comparados com os de ‘antigamente’.

Nos programas de televisão com chefs são criadas expetativas que, depois, não correspondem à realidade.
Criam, porque confundem tudo. Confundem gostar com o que é feito profissionalmente. Adorava ser cantora, mas tenho a pior voz do mundo. Há a ideia errada de que todos podemos ser cozinheiros profissionais. Todos somos capazes de cozinhar, mas em casa, numa cozinha profissional não. Fazer parte de uma equipa é muito diferente. No Chef’s Academy o intuito é transformar cozinheiros amadores em cozinheiros profissionais, mas a maioria não chega lá, porque não basta gostar, é preciso ter aptidão.

Peixe galo, feijoada, salsify, uma raiz, e couve pak choy, também conhecida por “couve chinesa”, compõem o prato de peixe, que é um deleite para as papilas gustativas

É preciso ter aptidão para se relacionar com os outros?
Nem por isso, porque há cozinheiros que são verdadeiros bichos do mato. É preciso ter capacidade para fazer muitas coisas ao mesmo tempo e de olhar para um tacho de arroz sem o livro ao lado a informar por quanto tempo tem de ser cozinhado. Só de olhar, tem de saber que o arroz está pronto. Um cozinheiro que tem talento faz o arroz sempre igual, e não pode sair mal. Ao contrário do que acontece em casa, em que conseguimos fazer bem um arroz 20 ou 30 vezes depois da primeira. A cozinha tem muita lógica. Um arroz, se não levar aquela água, não cozer aquele tempo que é preciso, se alguém levantar a tampa, vai perder a humidade que necessita para cozinhar como deve ser. É preciso que tenhamos capacidade para ver o que temos de fazer e emendar caso aconteça alguma coisa; uma dona de casa não é capaz de fazer isso. Às vezes é preciso emendar. Sabemos os porquês de tudo o que acontece na cozinha. Ou quase tudo… Os cozinheiros profissionais têm de ser perspicazes.

Ao terceiro prato veio o lombo de veado, o ruibarbo, o topinambur, que é um tubérculo, e a beterraba, o continuar de um ritmo constante e alinhado na rima dos sabores

De todos os lugares por onde passou neste roteiro de sabores, em Portugal e nos Estados Unidos, qual a cozinha que a inspirou mais, a ensinou a tornar-se uma melhor cozinheira?
O sítio que, para mim, foi o mais completo foi o Forte de São João Baptista [em Vila do Conde], o primeiro em que estive, com uma cozinha clássica francesa, onde aprendi a fazer o pão, a massa fresca, todos os caldos e molhos… era mesmo uma cozinha antiga. Foi onde me tornei cozinheira. A partir de então, fui adquirindo experiência.

No Avenue, onde permanece desde 2012, a presença da gastronomia portuguesa é conservada numa cozinha transversal.
É uma cozinha que tem sabores portugueses, mas possui toda a minha bagagem, toda a experiência que tive – fiz cozinha molecular, cozinha italiana e francesa – com o chefe Jerónimo [Ferreira], que teve comigo no Forte de São João [Baptista], depois fomos para o Sherarton [Porto Hotel & Spa] –, cozinha vegetariana – o chefe Jerónimo foi, durante dois anos, vegetariano… Esta sou eu, a minha equipa. Portanto, a cozinha do Avenue é de base portuguesa, é uma reinterpretação.

Baba savarin com texturas de citrinos e kumquat, uma laranja em ponto pequeno oriunda da China – a sobremesa agridoce, que refresca o palato no final do repasto

A cor dos pratos e o conjugação da fruta com o doce, na sobremesa, são duas características marcantes da cozinha da chef Marlene Vieira.
Porque eu gosto do equilíbrio da fruta com o doce, o qual é mesmo muito importante, além de que não gosto de coisas muito doces.

Há, aqui, uma preocupação constante com o equilíbrio dos nutrientes na sua cozinha?
Depende. Se for um menu de degustação, e por uma questão de equilíbrio, nunca repetimos os ingredientes ou dificilmente isso acontece, bem como de texturas, que não devem ser repetidas. Quanto ao menu à la carte, tem de haver um equilíbrio nutricional – não deve ter demasiados hidratos de carbono nem proteínas, nem gorduras, a mais, por exemplo.

Como podem os chefs, os cozinheiros profissionais, despertar a atenção para os cuidados a ter na alimentação?
Todos sabemos que não podemos estar mais de três horas sem comer. Mas todos deveriam saber que, numa refeição de carne, deveríamos comer apenas 180 gramas, o limite máximo, acompanhado de legumes e hidratos. Temos de comer alimentos com hidratos. Não comer hidratos é a maior burrice que se pode fazer, que é que acontece quando alguém se põe a fazer dieta. No dia a dia, os jovens comem mal, porque estão muitas horas seguidas sem comer e, quando apanham um hambúrguer, comem tudo e mais alguma coisa. E comem muito. Mas quando se referem os restaurantes ‘chics’, têm aquela… isso é ignorância, porque não têm a noção que, ao fim de cinco ou seis pratos já comeram mais do que num hambúrguer, porque comeram legumes, hidratos saudáveis e a dose certa de carne. Estes restaurantes não são para servir apenas um prato e o cliente ir embora. Há o pão, o amuse-bouche, a entrada, o prato e sobremesa, ou seja, há uma refeição completa. Nós oferecemos experiências, oferecemos vários sabores… não é com um prato que se vai dizer ‘aquele restaurante é muito bom’. Os restaurantes mudaram.

+ Avenue
© Fotografia: João Pedro Rato

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