Da casa chã se fez a Casa Modesta

As memórias de infância perduram em cada recanto por onde passam Carlos, Vânia e Pedro, três irmãos que, inspirados no passado, puseram mãos à obra e projetaram o futuro num lugar de encanto, no coração do silêncio que, ainda hoje, se ouve pela região algarvia e onde se pode andar à “bolina” no mar. Sejam bem-vindos à Casa Modesta.

A horta da casa, com espaço para brincar e explorar

A Ria Formosa é contemplada com um olhar demorado. Primeiro o verde mistura-se com os tons terra do sapal. Depois, entram as manchas de água de salgada do mar interrompido, entretanto por uma língua de terra que, do outro lado, é banhada, de novo pelo Atlântico. O imenso oceano a perder de vista, contemplado, com tempo, do terraço da casa-mãe desta que é a Casa Modesta, em Quatrim do Sul, no sotavento algarvio.

Uma casa que resulta do desafio à avó Carminda [Modesto de Brito], a qual é a reinterpretação da arquitetura tradicional, de um legado ancestral estudado de fio a pavio conjugado com a sabedoria popular, com uma abordagem contemporânea delineada pela estética e pelas exigências do bem-estar do presente. O perpetuar das construções algarvias de outrora, sobre as quais é do chão se faz a casa (re)vestida de materiais da região, por dentro e por fora, e decorada por objetos locais. Uma respeitosa amiga do ambiente, portanto, e da tipologia enraizada na memórias das gentes locais.

As linhas depuradas e o branco predominam a arquitetura

Do traço sobressai o branco da cal, no interior e no exterior, tendo aqui mais um elemento da terra, a cortiça que reveste a parede exterior dos espaços. Na sala onde os hóspedes são recebidos, e enquanto se mata a sede com um sumo de laranja acabada de espremer, oferecido num gesto de quem tão bem sabe dar as boas-vindas, o olhar é conquistado pela abóbada em tijolo de Santa Catarina, um dos materiais da região.

Por sua vez, a soleira das portas é feita a partir da pedra brecha, também do Algarve, a mesma que se encontra na bancada da cozinha de serviço e na ilha da outra cozinha. Já os vãos das portas, e à semelhança do que se fazia em tempos idos, são pintados de branco por dentro e de outra cor por fora – desta feita foi eleito o cinza escuro. “Era uma forma de tornar o interior das casas mais frescos”, explica Vânia Fernandes, a arquiteta da família e uma das mentoras da Casa Modesta.

Pensar local. Agir local

Os materiais locais estendem-se ao mobiliário e à iluminação. Falemos, antes de mais, do PAr, a Plataforma de ARquitectura de Vânia Fernandes e, das também arquitetas, Susana dos Santos Rodrigues e Joana Carmo Simões, a qual esteve a cargo da conceção do sofá – “ou encosto, porque se chamava assim antigamente” – da sala de receção de hóspedes, convida a sentar e desfrutar após uma longa viagem. A mesa grande da sala de jantar, assim como as cadeiras, as camas e os aparadores são da mesma autoria. Já o atelier The Home Project foi o responsável pela recriação os bancos “que partiram de uma base que tínhamos de heritage, os bancos que o meu avô fazia” – o avô Modesto ou “Campeão”, como era conhecido –, conta a anfitriã, o qual está no corredor de ligação da receção à sala de jantar.

Onde apetece mergulhar e preguiçar a toda a hora

Na iluminação, há candeeiros da Home Project, como os dos quartos, com especial atenção para os apliques em madeira de oliveira – além da mesinha de apoio que rebate, junto à janela, entre os bancos de pedra junto às janelas – os da Par, sempre com o propósito de conjugar as peças de luminária com os demais objetos e a própria arquitetura de linha depuradas, dando prioridade ao uso de leds. “Isso tem a ver com o conceito da casa chã”, em que o uso de materiais regionais é complementado com a implementação do conceito de casa sustentável, uma prática que se estende ao tanque – um ótimo pretexto para os presentes se refrescarem nos dias de calor – cuja água, submetida a processo de ionização à base de cobre e oxigénio – “um processo português”, acrescenta Carlos Fernandes – é também usada para rega da horta biológica, que existe na parte de trás da antiga casa de apoio – já lá iremos.

“Voltamos à tipologia antiga, em que a cobertura é inclinada a norte, para proteção dos ventos (…), com terraço, virado para sul, onde secavam os frutos”

No alinhamento da prática do pensamento local, cabe a vez ao latão, muito usual no Algarve de outrora, um material muito presente nas casas de banho – quer dos aposentos, quer a de serviço. “Nunca tínhamos utilizado o latão, mas como é um material nobre e era utilizado antigamente achámos que fazia muito sentido neste projeto”, diz a Vânia Fernandes. À vista salta ainda a prateleira do espelho forrada a cortiça, com verniz mate por cima, assim como a banheira, uma inspiração que resulta da herança árabe ainda bem presente em terras a sul do país.

A anfitriã reforça, assim, a intenção de “ressuscitar a arquitetura” da cultura algarvia, com outro exemplo: a reixa. A madeira pintada de branco e entrelaçada que se vê no terraço – onde estão cinco das nove suites – sobre a casa-mãe assume-se como prova, pois “será usada nas portadas das janelas da Casa Modesta, porque deixa entrar ar dentro de casa, sem que as portadas estejam abertas”, acrescenta.

Em suma, “voltamos à tipologia antiga, em que a cobertura é inclinada a norte, para proteção dos ventos, daí serem fachadas cegas – neste caso não, porque é onde estão as portas de serviço — e com terraço, virado para sul, onde secavam os frutos. Voltámos à tipologia dos anos 1940’, mas com a escala da casa dos anos 1990’”. Ou não fosse a Casa Modesta o resultado de “um estudo que fizemos sobre a arquitetura popular portuguesa” e das perguntas que foram fazendo aos vizinhos. “Juntamos tudo e fizemos esta casa como protótipo. É uma casa chã. E podemos fazer uma casa chã em qualquer parte do país”, assegura a arquiteta.

As raízes do mar e da serra

Rolando Correia e Sandra Patrão a dar corda à imaginação na cozinha da Casa Modesta
A cataplana interpretada por Rolando Correia e a tarte cremosa de alfarroba

Defronte à casa-mãe está outra casa que servia de apoio à primeira, “onde o meu avô trabalhava”, conta Vânia Fernandes. A anfitriã fala de Joaquim Modesto de Brito, o Modesto, como todos o tratavam, um verdadeiro “lobo do mar” conhecido também por “o Campeão”, e o dono da casa-mãe e deste espaço independente que, na frente, acolhe, de um lado, uma ilha, destinada a quem aprecia cozinhar e, do outro, o Spa Yin-motion, nas mãos de Pedro Fernandes, terapeuta recomendado. No meio o forno de lenha, datado de 1961, onde seca o peixe aranha; a cisterna, agora uma garrafeira, cujo acesso é feito por um alçapão disfarçado; e o bioco, o traje de influência árabe, típico, sobretudo, de Olhão e Tavira, outrora preto. Este é colorido. Por detrás do edifício baixo estão as outras cinco suites – duas com kitchnet e duas sem, alternadas em ato contínuo – e a horta biológica, onde não faltam ervas aromáticas e da qual se pode colher as cenouras com rama, entre outros produtos hortícolas. Um recanto precioso para os curiosos de palmo-e-meio, que tanto gostam de saber os nomes de tudo o que ali está semeado e plantado, pois árvores de fruto não faltam, e tanto gostam de explorar, (per)correndo (n)a propriedade e explorando os cantos da Casa Modesta.

As duas casas são, portanto, o resultado de um projeto de família – de Carlos, Vânia e Pedro –, sobre o qual “começamos a pensar em 2010”, revela Carlos Fernandes.

“Em 2010 decidi desafiar a minha avó, porque as nossas memórias estavam todas aqui”, continua a anfitriã. “Ela adorou!” Avançaram. E juntos criaram a Casa Modesta, em homenagem ao avô e à avó, que faz questão de dar a conhecer e saborear os seus dotes culinários aos hóspedes.

É caso para falar sobre o Algarve Cooking. Apresentamos o Rolando Correia e a Sandra Patrão, dois professores que falam sobre a cozinha algarvia com alma e jeito. “O projeto nasceu pelo nosso gosto pela cozinha”, em relação ao qual “decidimos partilhar as nossas origens”. “Usamos, essencialmente produtos algarvios”, acrescenta Rolando Correia. A prova está no uso do sal, do mel, do azeite, do vinho e dos demais produtos que ambos dispõem em cima da bancada, razão pela qual aceitaram o convite de Carlos e Vânia Fernandes. “E quem quiser pode pôr a mão na massa”, desafia Sandra Patrão, que dita o menu da noite, porque outros mais serão, de certo, dados a provar: Tapas de cavala com acém em pão de azeitona, para começar; cataplana de amêijoas, com “uma interpretação” deleitosa “da nossa cataplana tradicional”; uma suculenta galinha acerejada, “prato típico da serra, em que a galinha é cozida com enchidos e cebola, é refogada, para dar-lhe um toque crocante por fora, e estufada”; e a tarte cremosa de alfarroba, com base de amêndoa e figo, e servida com figo fresco e iogurte de São Brás, “de comer e chorar por mais”.

À descoberta do sapal e de mais cozinha algarvia

Com vista para a ecovia do Algarve

Nada melhor que começar a manhã com um pequeno-almoço caseiro, com a torradeira dos tempos dos nossos avós – funciona na perfeição –, para quem tanto gosta de torradas de pão diverso acompanhadas por mel e doce caseiro, queijo fresco e frutos secos, cereais e leite para todos os gostos, café, chá e sumo natural de laranja, bolo caseiro, fruta da época e alfarroba, para comer, assim, seca – uma delícia.

Depois, vamos ao passeio pelo sapal das Fontes Santas, onde a natureza em estado selvagem rodeia a ecovia do Algarve. A pé ou de bicicleta – há quatro para quem gosta pedalar. Depois? Bom, depois o melhor é mergulhar no tanque e preguiçar nas chaise lounge do terraço. Aos que apreciam a gastronomia fica a sugestão de uma visita – ou mais – ao Mercado de Olhão. Além disso, estão previstas atividades nos viveiros com os viveiristas, “para conhecer os tipos de amêijoas, ver como se apanham e trazê-las para fazer na Casa Modesta, um prato muito antigo, o vila de amêijoas, que se fazia aqui, em Olhão, e em Tavira – põe-se uma pedra no meio de uma chapa de zinco, onde se dispõem as amêijoas em círculo, tampam-se com pedras e caruma, e ateia-se o lume”.

João Tiago explica as iguarias do Mezzanine –as tapas, a cozinha algarvia e torta de laranja com alfarroba

Amêijoas à parte, passemos à Mezzanine. Um bar e vinoteca dos n.os 58 e 60 da rua de Santo António, em Faro e que, da ria e do mercado local, levam os produtos do mar e da terra para o restaurante e a Casa Modesta. A ementa: Tapas e pintxos. Um repasto que obriga a dar azo à imaginação, para que a combinação de sabores, da autoria de João Tiago, o mentor do Mezzanine, e André Gonçalves, dois apaixonados pela cozinha, seduzam o palato à primeira – o que aconteceu –, sempre em companhia de um bom vinho de terras algarvias.

Da ria para o prato

Porque a tarde pede calma a seguir a um almoço animado e aprazível, a recomendação recai num passeio à boleia do Bolina entre as ilhas barreira da Ria Formosa, enquanto se ouve a história sobre a cidade de Olhão e a composição do Parque Natural da Ria Formosa, ao sabor do vento, com particular destaque para as ostras arcachon que saem do país para fazer as delícias dos gourmets franceses. Mas primeiro, é preciso dirigir-se para a Marina de Olhão e acertar nas marés.

Aula de sushi de Tiago Santos e as iguarias (a)provadas

Chega a hora do repasto da noite e a vez de Tiago Santos que, desde logo desafia os presentes a porem a mão da massa, para aprenderem como se fazem os rolinhos com arroz e guarnições à escolha. Falamos do Shushi do Tiago, um projeto criado por este nativo de Olhão que decidiu começar a levar o que tão bem sabe fazer a casa dos sushi lovers do Algarve, com a particularidade de, na Casa Modesta trabalhar apenas com peixes da Ria Formosa – robalo, dourada, besugo, rascaços, sarrajão, cavala, carapau, corvina, anchova – e a garantia que os de viveiro ficam de fora. As ostras, o polvo, a lula e o camarão também entram no portfólio do Sushi do Tiago, “depois tudo depende dos sabores”.

Home cooking pela avó Carminda

O arroz de pato da avó Carminda

A ajuda de Carlos e Vânida Fernandes é preciosa na cozinha e na sala de jantar, pois a paixão pela gastronomia algarvia e a arte de bem receber é inigualável, acima de tudo com os hóspedes mais novos, de todas as idades. Sem exceção.

Excecional é Carminda Modesto, a avó dos três irmãos, que faz uma arroz de pato de criar água na boca. A prova de que a gastronomia portuguesa, tal como ela é, perdura pelas casas algarvias, despertando as reminiscências nos hóspedes.

E assim nos despedimos, quase em família, porque na Casa Modesta todos se sentem em casa, ao domingo, com a presença de Modesta e Vânia Fernandes, a avó Carminda, Joaquim e Carlos Fernandes.

Boas férias e bom apetite! •

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© Fotos: João Pedro Rato Fotografia

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