O 175.º aniversário do Lhardy / Madrid

História. Literatura. Gastronomia. A elegância e o romantismo do século XIX num espaço intocável e onde a cozinha francesa, legado deixado pelo fundador, persiste com um toque de graciosidade madrilena.

O samovar russo, as finas garrafas de cristal e o imperioso espelho
e a escadaria que convida ao repasto

De frente para a fachada ao estilo do Segundo Império e de porta aberta desde outubro de 1839, contemplamos as montras de outrora com os sabores que perduram no mais fino receituário espanhol. Um simples gesto disferido pelo olhar, menos demorado do que acontecia num passado mais longínquo, quando a curiosidade movia uma plateia imensa defronte do Lhardy, no n.º 8 da rua San Jerónimo 8, a dois passos da Puerta del Sol, o centro da capital espanhola, para ver as boas novas deste restaurante de Madrid fundado por Emile Huguenin Dubois, mais conhecido por Emilio Lhardy, de origem franco suíça.

A relíquia de Emilio Lhardy

Casa de reis e rainhas, de políticos, de artistas e escritores, de conspirações e revelações de amor, o Lhardy conta a história de três séculos em 175 anos de história celebrados a 28 de outubro de 2014, desta vez por Milagros Novo – representante da sexta geração à frente do restaurante e então co-proprietária – que, com um sorriso inigualável, nos dá as boas-vindas.

Sem mais delongas, é dado o início à visita, primeiro à loja, onde o doce cheiro da pastelaria seduz os cinco sentidos até ao momento em que ficamos de frente para o majestoso espelho disposto na parede do fundo, ao qual “os clientes brindavam, porque pensavam que os seus antepassados estariam do outro lado”, conta a nossa anfitriã. A seus pés, e sobre um consola antigo, está um samovar, peça muito apreciado pelos czares russos, com água fresca, da qual se servem os clientes do Lhardy, para matar a sede. Atrás garrafas antigas de cristal da Boémia desfilam com o requinte de há séculos, cinco das quais guardam dentro Vinho do Porto, Vinho da Madeira, Vinho de Málaga, Moscatel e Marsala. O cenário original desenhado por Rafael Guerrero, o responsável pela decoração do Lahrdy, e muito contemplado, desfrutado e vivido pelo público feminino da capital espanhola, pois foi este “o primeiro sítio onde as mulheres podiam vir sozinhas”. E muitas, de certo, provaram o consomé Lhardy, um hábito que, no presente, acalenta a alma dos habitué, sobretudo, nos dias frios de inverno – o pagamento é feito à saída.

Do acervo fazem também parte uma notícia publicada no jornal espanhol ABC, em 1850, emoldurada e à vista dos que passam no corredor de acesso ao restaurante, bem como um quadro com o menu e os respectivos preços – em pesetas –, datado de 1908, os pequenos menus do dia enxcaixilhados em molduras semelhantes às de um espelho antigo, em prata, de senhora, além de um velho livro de contabilidade, sendo que oito foram doados, em 2014, à Biblioteca Nacional de Espanha.

Pelas mãos de Rafael Guerrero

O requinte intemporal da sala Isabelino

Subimos a escada para o piso superior. Os degraus, que a compõe mantêm a graciosidade de uma decoração primorosa de tempos idos, levam-nos às seis salas do restaurante – três originais e outras três erigidas há 27 anos, aquando da ampliação. Começamos pela sala Isabelino, a principal e a maior do Lhardy, “o primeiro restaurante espanhol com mesas separadas e de toalha branca, talher de prata e carta, e flores ao centro”, revela a anfitriã, e o testemunho do requinte de uma época primada pela elegância.

As pratas da casa são uma das jóias da coroa do restaurante

Nas paredes, os espelhos antigos comprovam, uma vez mais, o requinte de uma época, ao lado do retrato de Emilio Lhardy, pintado por Federico de Madrazo e datado de 1867. O universo da pintura é completado pelos quadros de Augustin Lhardy, o filho do fundador – ou pelo mestre Palmero, que pintou os filhos de Joaquín Sorolla num quadro exibido na sala que homenageia o violinista Sarasate –, ao qual se juntam as cadeiras de veludo vermelho, a reprodução das originais – estas, em menor número, mantêm os pés de metal e uma flor nas costas –, as pratas antigas, expostas nas prateleiras de madeira escura, e a luminária, a primeira a funcionar a gás e que, hoje, funciona a eletricidade.

A tónica madrilena na cozinha francesa

Blanco, a sala de eleição da Real Academia da Língua Espanhola

Sobre a gastronomia, Milagros Novo reforça o contributo da cozinha francesa, complementada pelo toque madrilena implementado por Augustin Lhardy. Eis, então, que é introduzido o famoso – e delicioso – cozido madrileno, ao qual “damos um tratamento especial”, diz-nos Daniel Marugás Novo, o representante da sétima geração Lhardy e recém-co-proprietário do restaurante, que nos acompanha no repasto e na visita.

O clássico cozzando madrileno

Servido numa bandeja e composto por carne de vaca e de porco, peito de galinha, enchidos, batata, couve, cenoura e grão, o cozido é precedido pela sopa feita a partir do caldo do cozido. Este é, portanto, o ex-líbris e o prato do Lhardy mais apreciado no inverno, embora nos meses quentes do ano continue a registar pedidos na cozinha que, ainda hoje, preserva o receituário antigo da casa e “o cuidado com a apresentação dos pratos”, a qualidade e a sazonalidade dos produtos, acrescenta o anfitrião, continua Daniel Marugás Novo.

Assim, na lista dos clássicos constam o pato com perfume de laranja, as tripas de vaca à madrilena, o tornedó Rossini ou o célebre cozido madrileno, a juntar a outras criações da carta, como a vichyssoise de maçã, o foie gras com Vinho do Porto, a perdiz estufada com cebolinhas francesas, a pescada cozinhada a baixa temperatura com emulsão de tomate e camarão ou o surpreendente souflé surpresa, este entre as demais sobremesas, que rematou o repasto na sala Blanco, na companhia de um Crianza tinto 2010, de Rioja, desenhado para os 175º aniversário do restaurante, e de retratos da Infanta D. Isabel de Bourbon, entre outras ilustres personalidades e mensagens de agradecimento que ornamentam as paredes revestidas pelo elegante papel original.

À parte, há o menu de degustação criado por ocasião dos 175 anos do emblemático Lhardy. Um passeio pela história, pela literatura e pela gastronomia do restaurante madrileno, com criações que são um tributo “às pessoas que por aqui passaram no século XIX” – o violinista e compositor Tomas Bretón, o jornalista, escritor e crítico literário Azorín, a exótica Mata Hari, o pintor Joaquín Sorolla, o dramaturgo Benito Pérez Galdós, o escultor Mariano Benlliure e Jacinto Benavente, o El Goloso, que serviu de inspiração para o soufflé de Lhardy –, o qual continua a acicatar o palato a gourmets e gourmands que o queiram experimentar ao jantar. “Comer no Lhardy [à noite] é muito romântico”, garante co-proprietário do restaurante.

Repasto em privado

A originalidade da sala Japonés

À passagem no corredor, o linóleo que reveste de parede e os chapeleiros da época, zelados pelo tempo, dão continuidade à subtileza das formas da época. A meio está a sala Blanco, atrás referida, a eleita pela Real Academia da Língua Espanhola cujos membros aqui se reúnem para realizar as suas tertúlias.

Detalhe que reflete a magnificência do papel de parede chinês

Ao fundo está a sala Japonés, decorada a preceito com as peças originais – o papel de parede, de origem chinesa, dominado pelos tons vermelho e dourado, o qual denota um delicado trabalho manual irrepreensível e inimitável, o candeeiro de teto pintado à mão, disposto no centro, os longos cortinados e os espelhos em moldura de bambu trazido das colónias da era filipina. “Assim, os nossos clientes desfrutam do século XIX”, afirma Daniel Marugás Novo, que fala acerca das histórias de conspiração política e as paixões aqui vividas no passado, uma das razões pelas quais o legado de Emile e Augustin Lhardy permanece intacto.

Na ala nova estão as salas que prestam tributo ao violinista e compositor espanhol (Pablo de) Sarasate, ao cantor (Julian) Gayarre e ao cantor de ópera italiano (Enrico) Tamberlick, todas feitas à imagem do requinte da ala mais antiga.

Findo o repasto e terminada a visita, a passagem pela loja apraz os mais gulosos, que jamais sairão sem levar para casa uma recordação efémera, claro, da pastelaria que se faz no Lhardy, um restaurante a incluir no roteiro da próxima viagem a Madrid.

Bom apetite! •

+ Lhardy
© Fotografia: Miguel d’Aguiam

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