De casa senhorial a um hotel ligado às artes / Santa Luzia Art Hotel

Na antiga estrada de Santa Luzia delineada pelo traçado irregular do casario de granito do centro histórico de Guimarães abriu, a 31 de dezembro de 2015, um elegante hotel num vetusto edifício datado do século XVIII.

De fora e de dentro, o ripado, ora em aço, ora em madeira, que se apodera da quase totalidade da casa senhorial “não é puramente estética nem o formalismo na sua máxima dimensão, mas uma performance”, explicou o arquiteto António Jorge, do atelier Cerejeira Fontes, enquanto falava sobre o uso das mesmas no exterior, com a finalidade de zelas pela intimidade nos quartos virados para o espelho de água no pátio interior, desenhado para ser palco de performances, concertos e teatro tendo, do lado oposto, o anfitreatro para o público do hotel e da cidade.

O espelho de água reflete a tranquilidade ao ar livre

“As ripas são uma solução natural por aqui, têm a ver com a nossa cultura”, continuou o arquiteto de quem o traço denota a inspiração nos espigueiros da região minhota. Afinal, “a nossa arquitetura é feita a partir de uma construção muito prática, ou seja, utilizamos a matéria bruta que temos à mão, à qual juntamos a vida das pessoas, e tudo isto dá um poema”, ou seja, “a estética é apenas a capacidade poética que temos quando construímos algo”, continuou.

É precisamente essa capacidade de submeter a harmonia entre formas e cores, e a funcionalidade que estão explícitas no Santa Luzia Art Hotel, que se revê no passado e, ao mesmo tempo, está ligado, em ato contínuo, ao futuro até porque “somos um somatório de séculos, razão pela qual não podemos deixar de olhar para trás”.

Ordenado pelo conforto ditado pela atualidade no que concerne ao design de interiores, no hotel “tudo está subjacente à escala do indivíduo”, afirmou António Jorge “porque, hoje em dia, são cada vez mais as pessoas que preferem um hotel pequeno (…) e que tenha mais a ver com as suas casas”, justificou o arquiteto, “além de que quem aqui trabalha tem um nome”.

As cores e as formas do salão espelham a elegância e o conforto do hotel

A comprovar as razões expostas está a forma como as poltronas e os sofás estão dispostos no salão, com vista panorâmica para o espelho de água, e na saleta – palavra familiar, muito comum nas casas antigas, onde a família se reunia ao serão –, espaço convidativo para pôr a conversa e a leitura em dia, uma vez que dita a tendência do intimismo muitas vezes procurado num hotel de cidade. Assim como os quadros, cuja maioria foi adquirida em leiloeiras, e todos encaixam numa linha eclética, pois a escolha dos mesmos não foi feita “pelo objeto em si, mas pela atmosfera que cria” e essa atmosfera é como a de uma casa, isto é, quer-se desfrutada em pleno.

Um cálice de Vinho do Porto e o pastel de nata reclamam, para si, as boas vindas

As paredes de granito das Taipas estão, por sua vez, assumidas na fachada virada para a vetusta rua de Santa Luzia – hoje rua Francisco Agra – e testemunho de tempos idos que perduram neste Santa Luzia Art Hotel de quartos ora amplos, ora de dimensões mais reduzidas, e decorados com o ténue traço da belle époque harmonizada por tons suaves e pelo conforto.

Desçamos a escadaria de madeira e ornamentada pelo ripado feito a partir do mesmo material na ala antiga da casa, palco de estórias contadas por Nuno Freitas, um dos proprietários do hotel e o mais novo dos irmãos, que chegou a viver nesta casa senhorial que pertencera aos avós, donos de outros edifícios de Guimarães; ou atravessemos o enorme salão, com o piso rebaixado, ornamentado por peças de mobiliário inspirados na tendência escandinava do traço e da cor, espaço esse que faz a ligação com a ala nova, erigida a norte, para a sala do restaurante.

O restaurante reproduz o sentimento similiar de quando sentimos que estamos com a casa cheia

Primado pela elegante decoração sóbria dominada pela madeira, este espaço ligado à gastronomia enche-se de aromas que conquistam o olfato à primeira e testam o palato após o início do repasto. Por aqui, a cozinha é regional aos domingos, o que deu azo à criação do menu “12 meses, 12 pratos”, ou seja, há um prato regional em quantos domingos cabem num mês, o qual muda no mês seguinte. E tudo é feito sob a supervisão do chef Nuno Merêncio, que optou por “uma gastronomia elaborada com criatividade sem exageros”, segundo Pedro Mendes, o diretor comercial do Santa Luzia Art Hotel, sendo a cozinha portuguesa a base de cada repasto e a loiça ou o talher, à mesa, de cunho nacional.

Medalhão de novilho com bacon, puré de cogumelos e espargos salteados

Em jeito de síntese, há o crepe de gambas, para provar e aprovar, assim como o estaladiço de queijo de cabra ou as pataniscas de bacalhau, ou o medalhão de novilho com bacon, puré de cogumelos e espargos salteados, para comer até ao fim.

A trilogia de chocolate da autoria do chef Nuno Merêncio

Os rolinhos de linguado com molho de vinho branco é outro dos pratos assinados pelo chef Nuno Merêncio, que inscreveu na carta o pudim de Abade de Priscos com Vinho do Porto, bem como uma trilogia de chocolate recomendada aos apreciadores de tão guloso produto, apesar da maioria ser de origem local.

Quando o primeiro repasto do dia é feito a preceito

Porém, o restaurante – espaço reservado ainda ao faustoso pequeno-almoço do hotel, composto por sumos, leite, chá e café, fruta, frutos secos e compotas, panquecas e bolos caseiros, pães, queijos e enchidos, quentes, iogurtes e cereais –, está também de portas abertas para a rua, “porque este hotel é também para os vimaranenses”, declarou Pedro Mendes.

De dentro para fora, é notória “a forte componente histórica e cultural da cidade que incrementou a ocupação em Guimarães desde que o centro histórico é Património Mundial e, depois, como Capital Europeia da Cultura” e uma “cidade que se faz bem a pé”.

Na rota de uma cidade eclética na cultura e nos lugares

Sigamos a recomendação de Cidália Castro, a diretora do Santa Luzia Art Hotel e calcorreemos as ruas empedradas do centro histórico da cidade, declarado como Património Mundial, a 13 de dezembro de 2001, pela UNESCO. Primeira paragem: Castelo. Engalanado com a primeira bandeira de Portugal, o castelo de Guimarães, bem como o espaço envolvente, é o epicentro das comemorações do 24 de junho de 1128, data da batalha de S. Mamede, da qual saiu vitorioso D. Afonso Henriques – e que fora travada em oposição a sua mãe, D. Teresa, traçando o caminho da independência do então Condado Portucalense mas só em 1179 é reconhecido como rei de Portugal pelo Papa Alexandre III –, por ocasião das quais é recriada uma feira medieval entre 23 e 26 deste mês.

Junto ao castelo está a igreja de S. Miguel, de arquitetura românica onde, provavelmente, fora batizado D. Afonso Henriques, o Paço dos Duques de Bragança, elevado a monumento nacional em 1910, e a estátua de D. Afonso Henriques com a sua espada em riste, a qual é da autoria de Soares do Reis.

Mais abaixo, na porta que antecede, em distância, a porta de entrada da igreja de Nossa Senhora do Carmo, cujo coro em madeira com belíssimos frescos, está a caixa de prevenção de incêndios de 1883, onde cada freguesia tinha um número de toques de sino atribuído.

Diz-se que a receita das tortinhas de Guimarães foi inventada pelas “tortas” do Convento de Santa Clara

Passemos pela rua de Santa Maria, principal via do século XII que ostenta muitas das casas senhoriais da cidade de Guimarães, com curiosas histórias para ouvir, como as Festas Nicolinas – ou festa do pinheiro, com calendário cheio entre 29 de novembro e 7 de dezembro – que também por aqui “passam”, por causa do pregão, tendo como certa a ementa tradicional composta por rojões, papa de serrabulho, aletria e leite creme, mas também poderiam constar as tortinhas, designação que advém do nome que era dado às freiras que viviam no então Convento de Santa Clara, edifício do século XVII que acolhe a Câmara Municipal de Guimarães desde os finais dos anos 1960’.

Quando é chegada a hora do repasto, o tempo não dá tréguas

No itinerário cabe ainda a praça de Santiago, o ponto de encontro mais eclético da cidade, e o largo da Oliveira, mas a hora do repasto aproxima-se, sendo eleito o restaurante Buxa para acalentar o estômago e a alma, no qual a garrafeira destaca produtores nacionais, do Douro ao Alentejo, e os pratos ostentam a cozinha portuguesa.

O altar da igreja de São Francisco expõe a arte azulejar e um teto pintado com frescos a contemplar

No alinhamento do passeio pedestre há que incluir o Museu Alberto Sampaio, as igrejas de São Gualter e a de São Francisco, detentor de um espólio ímpar, de um altar sublime sob um teto de madeira enriquecido com frescos que conquistam o olhar à primeira, e a zona dos couros, repleta de tanques – uma das maiores concentrações de tanques da Europa –, onde as peles eram curtidas e lavadas, atividade que começou já no século XIII , ganhando grande importância no século XIX. Em redor, estão os bairros onde moravam os trabalhadores, como a chamada Ilha do Sabão, residida por quem produzia o sabão feito a partir da gordura que estava agarrada à pele.

O Centro Internacional de Artes José de Guimarães, na Plataforma das Artes, é uma das infraestruturas criadas por ocasião de Guimarães 2012 – Capital Europeia da Cultura

Daqui, o roteiro pode continuar para o multidisciplinar e multicultural Centro Cultural Vila Flor, e para a Plataforma das Artes, outrora o mercado municipal e onde, há quatro anos, foi inaugurado, no âmbito de Guimarães 2012 – Capital Europeia da Cultura, o Centro Internacional de Artes José de Guimarães, mas não sem antes passar pelo largo do Toural, onde está inscrita a frase “Aqui nasceu Portugal” e onde as barbearias dali e em redor reúnem homens de gerações distintas para dois dedos de conversa — com destaque ainda para o comércio convencional de rua e as típicas drogarias portuguesas. E vislumbremos um “novo” D. Afonso Henriques saído, desta vez, das mãos do escultor português João Cutileiro, na praça da Misericórdia onde, em 1852, a rainha D. Maria outorga foral à, a partir de então, cidade de Guimarães até ai vila portuguesa cuja origem remonta a uma villa, a então Vimaranes, génese de Vimara ou Guimara, nome do hipotético dono desta terra que, com o passar do tempo, evoluiu para Guimarães, onde o próximo desafio é elevar a cidade e Capital Verde Europeia.

A piscina do Spa é ideal para recarregar baterias

De volta ao Santa Luzia Art Hotel, e porque o tempo tem sempre muito para contar, fiquemos pelo Spa — no mesmo piso da garagem convertida num espaço versátil e numa galeria de exposições, entre outras salas preparadas para receber ateliers, e uma biblioteca – complementado por uma piscina interior, para relaxar o corpo e a mente.

A piscina estende-se sobre o comprido

Do lado de fora, a piscina que preguiça sobre ao longo de 46 metros no cimo da ala nova, ao ar livre e com vista de 360°, já é, de certo, desfrutada nestes dias quentes de estio.

A ir e (re)descobrir! •

+ Santa Luzia Art Hotel
© Fotografia: João Pedro Rato

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